Eu caminhava pela estrada de chão batido, em busca de algo que chamasse minha atenção, ouvindo apenas o som dos meus passos. De vez em quando, me aventurava em algum campo, onde a floresta me presenteava com amoras fresquinhas.
Minha história parecia uma casinha abandonada no meio do nada. Sonhava com ousadia, imaginando-me dirigindo um carro na velocidade da luz, até me encontrar comigo mesma do outro lado do espaço. Mas aquele espaço ao meu redor era tão pequeno que mal cabiam todas as minhas fantasias.
No mês de outubro, às vezes, corria para colher içás pelas roças, sondava buracos, pegava-as e arrancava suas mandíbulas antes de assá-las para comer escondido de minha mãe. Sozinha, minha maior alegria era andar pela mata, olhar para tudo como se estivesse vendo pela primeira vez.
Um turbilhão de emoções me envolvia, assim como as formigas cercam uma caixa de abelha. Muitas vezes, eu saía às escondidas só para descobrir se alguém sentia minha falta. Vagava pelo milharal, trançando os cabelos das bonecas de milho, minhas amigas visíveis e secretas. Na minha cabeça, criava milhões de histórias e causos que nem sequer entendia. Meu mundo de ilusão quase parecia perfeito. Sempre com os pés descalços, dedinhos à mostra, a sola endurecida suportando os espinhos. Certo dia, surgiram feridas na sola do pé. Começou com um pontinho, que logo virou uma pequena auréola, e dentro dela nascia carne esponjosa que doía tanto que apagava meu sorriso. Isso durou por meses, e nunca contei a ninguém. Sofria em silêncio, como se sofrer fosse meu destino. Até que um dia percebi que precisava fazer algo antes de perder completamente a vontade de caminhar.
Minha mãe sempre mantinha uma agulha presa em um calendário pendurado na parede da sala. Peguei a agulhinha como se fosse o objeto mais precioso do mundo, sentei no chão e comecei a cutucar a ferida. Parecia que toda a dor do universo havia decidido me visitar de uma só vez, tão dolorosa e cruel era a tarefa. Insisti até remover toda aquela carne estranha de dentro do poço. Quando começou a sangrar, parei.
Nem percebi quando sarou. Só sei que o buraco desapareceu e a vida continuou em festa. Minhas três irmãs dividiam a cama comigo, e eu adorava quando ficava espremida contra a parede, com o nariz encostado nos torrões, sentindo o cheiro de terra seca. Era como se as paredes me protegessem durante os pesadelos.
Uma parte do nosso quarto, perto da porta, estava bem desnivelada. Com o tempo e as limpezas com a vassoura, formou-se uma pequena montanha. Os pés da cama estavam apoiados em alguns tijolos, enquanto a montanha ficava bem evidente ao lado das duas camas alinhadas, uma das quais era do meu irmão.
Com o passar dos anos, fomos crescendo e a cama ficou pequena para nós quatro. Eu sempre arranjava alguma solução prática. Peguei um pedaço de couro de carneiro que meu pai usava como manta no arreio do cavalo, estendi sobre a montanha de terra e comecei a dormir ali. Era desconfortável, com a cabeça mais alta e os pés mais baixos, parecendo que dormia quase em pé, mesmo estando deitada. Ainda assim, achei a ideia incrível.
Minhas irmãs adoraram ter mais espaço para dormir e não se importaram nem um pouco de eu estar no chão. Mas havia noites em que eu chorava, sonhando com atenção, esperando que me chamassem de volta. Isso nunca aconteceu.
Um dia, meu pai disse que me levaria para São Paulo, para que eu pudesse aprender algo na vida. E lá fui eu, embarcando nessa história. Do interior à capital! Já tinha completado onze anos, madura demais para trabalhar e viver por conta própria, ou assim pensava.
Enquanto o ônibus seguia pela estrada cheia de curvas, meu coração doía de saudade da minha mãe e dos meus irmãos. Mas, ao mesmo tempo, eu sentia um certo orgulho por estar saindo da minha zona de conforto, como aquele papelzinho do realejo que salta para fora. Segui desejando que a sorte estivesse ao meu lado.
Dois meses de tormento me aguardavam. Dias e noites sofridos e desconfortáveis pesaram em minha mente. Uma saudade imensa das minhas poucas coisas - das florestas, do caminhar sorrateiro sobre as folhas, das conversas que eu tinha com as árvores, dos canteiros, dos banhos de água fria, da minha doce mãezinha e dos meus irmãos, que não se incomodavam em dormir no chão, mas enchiam meu coração de amor.
Toda noite eu chorava como uma criança, sem saber o porquê. Até que pedi para me levarem de volta para casa.
Era um dia bem quente, com poucas nuvens e um sol escaldante, quando adentramos o último trecho desconhecido da estrada. Um simpático pé de eucalipto, plantado em uma bifurcação, me reconheceu e estendeu uma de suas mãos, que balançou ao receber uma rajada de vento.
A felicidade me encontrou naquele instante.
A pessoa que me trouxe de volta estava de cara fechada, por ter que largar o trabalho para me atender.
E eu era eu de novo, como se estivesse renascendo naquele momento.
A estradinha, aquela que tanto me encantava, com sua amizade desinteressada refletida em meus sonhos mais recentes, a qual eu havia abandonado por puro capricho de meu pai, abriu-se em um sorriso maroto, exibindo suas curvas e retas bem desenhadas, e perfumou minha chegada com uma mistura de aromas.
Eu não estava a pé, mas sentia cada pedacinho de terra batendo no pneu do carro, as pedrinhas tilintando como gotas de chuva. Ah, que doce ventura! Todos os moradores daquele lugar estariam com inveja de mim. Não havia beleza em mim, apenas o encanto do retorno, a consciência da saudade se dissipando, as alegrias escorrendo pelos cantos do rosto rosado e livre.
Nenhuma pergunta, nenhum abraço, nenhuma euforia dos meus familiares, apenas a porta aberta e a lã de carneiro à minha espera. Parecia que aquele intervalo de tempo só tinha existido nos meus pesadelos. Nada mudou! Tudo estava em seu lugar: o fogão a lenha com suas línguas de fogo, a lamparina deitada sobre o armário esperando a noite, o balde transbordando de água fresca, o chão limpo, sem nada para incomodar a terra batida. E minha montanha, intacta, pronta para me receber novamente.
Ainda deu tempo de usar a enxada na plantação antes que a noite chegasse. Talvez fosse verão, não sei! Todas as estações pareciam iguais!
A lua prateada surgiu para a festa, e dentro de minha cabeça também havia celebração. As lamparinas foram acesas, trazendo pouca luz e silêncio. Falei pausadamente, em tom baixo, para não romper a paz daquele lugar. Sentia uma felicidade imensa, difícil de expressar, por estar de volta àquele lar abençoado.
Minha mãe seguia com sua missão de cuidar, enquanto meu pai se dedicava à árdua tarefa de sustentar. Minhas irmãs, sempre meigas, ajudavam sem parar no que podiam. E eu, a pequena formiguinha do acaso, no meio daquele vai e vem. Tudo se completava de forma tão maravilhosa. O céu, como uma aquarela de paz, mudava de azul para cinza, de cinza para alaranjado, enquanto o olheiro do mundo nos espiava com suas luzes passageiras.
A noite, mágica como sempre, chegava chamando o fósforo para acender as lamparinas, iluminando por dentro, enquanto a lua clareava lá fora e as estrelas compunham a ópera. Mas o maior brilho vinha da fadinha mãe, que nunca se cansava. Era ela quem apagava tudo, preparando-nos para o descanso merecido da cama, antes de também se apagar para se renovar para um novo amanhecer.
Havia tantas esquinas que se perdiam entre folhas verdes, curvas abençoadas conduzindo aos suaves frutos presos ao ventre da terra. Acima, destacava-se a estradinha empoeirada, aberta para todos, como se esperasse por um amor para tocá-la com pés suaves e suados, afundando-se em sua matéria viva e inerte. Era uma delicadeza estar ali, contemplando tamanha proeza do viver!
Havia uma cumplicidade natural entre os seres – as abelhas com suas flores, as flores com seus beija-flores, todos compartilhando em harmonia e sintonia. Cada um em seu lugar. A enxada repousava num canto, o varal apoiava-se nos galhos, o chiqueiro aproveitava a sombra da figueira, o cocho segurava o milho, e a roça enfeitava a palhoça. Memórias queridas balançavam nos galhos.
A felicidade, sempre acolhedora, nos oferecia um café quentinho à sombra de qualquer árvore. As enxadas viravam cadeiras, a terra fazia-se mesa, enquanto a roça nos observava com seu olhar esverdeado. Semeadores natos, rancheiros de coração, havia tempo para dançar nos finais de semana, bater um bom papo à beira dos campos e descansar na hora certa. Amigos se colhiam nas estradinhas, escolinhas eram cobertas de fé, brincadeiras animavam os fins de tarde, e frutos eram colhidos direto dos pés.
Águas corriam livres pelos vales, nascentes abençoadas da terra, enquanto o povo valente e sincero vivia, sem esperar mais do que o necessário.
Corredores de terra pisada entre capins, flores de varias cores sobre jardins. Cada pé sugerindo um lugar, pessegueiros a se desejar, bananeiras de frutos variados, coisa linda de se olhar.
Havia magia nos fogareiros de brincadeira, galhos secos entre tijolos, pedras a se cozinhar. Tudo de faz de conta, abrindo conhecimentos, despertando pensamentos.
As famosas preces de fim de semana, corroborando o descanso tão almejado, acalentava nossa sede de passeio.
Raramente nos furtávamos da alegria de fazer visitas a algum parente próximo, ou, simplesmente, tomar um café em casa de alguma vizinha, acompanhado de muitos causos e risos. Enquanto os adultos se regalavam em não fazer nada, Me preparava para mais um dia de exploração do lugar. Via novidade em tudo. Um simples regato, açucarado, de águas límpidas, sucumbindo em desleixo pelos córregos, desaguando por entre florestas furtivas, rolando, entre a mata, motivo dos olhos brilharem de satisfação. Assim aprendi o simples.
Deus estava presente em tudo, mesmo sem que me despertasse por dentro. Sabia que o conhecia, pelo simples fato de as coisas existirem.
Não havia sol forte, nem chuva tempestuosa, apenas dias ensolarados que nos cobria com um manto suave e as chuvas, não se demoravam muito, para não nos manter ociosos demais.
As pequenas piscinas nascidas nos buracos das vias, tornavam-se motivos de brincadeiras dos pés calejados, nos proporcionando momentos de descontração em meio ao árduo trabalho de todos os dias.
E as letras da musica vida se formavam.
As pequenas borboletas que nasciam, em massa, sobrevoavam sobre os capins secos a procura de mim, com suas asas abertas e coloridas, prontas, para serem vistas e apreciadas, como fazendo parte, sem, no entanto, perder o entusiasmo por voar, Inspirando as asas do pensamento.
Juncos nascidos as margens dos pequenos lagos, aproveitando deles, o espaço, enquanto corriam pelo meio, sem se intimidar. como um corpo, perfeito, sintonizado e coerente, se davam e se recebiam.
Não sendo borboleta, não tendo asas e não voando. Também vibrava entre elas.
As mariposas que serviam de banquete aos sapos, a madrugada que despertavam seus coaxos, as luzes que a lua desperdiçava entre o banhado, transformando o ar em prata, despertando, em mim, um aconchego, como se um véu, de veludo, me cobrisse o coração.
Amava andar por debaixo das grandes árvores, elas me contavam histórias de magia, de tempos antigos, de gente que já se foram, de passados distantes e ainda vivos, de fadas de vento, de Elfo desbravador, oriundo da magia que despertava em meu pensamento. Como foram parar ali?
Eu, provavelmente, lhes trouxera de algum lugar, que, também desconhecia, minha mente estava tão limitada que esqueci o caminho que me fez chegar ao ventre. De onde vim?
Achei meu lugar, Sim, aquele era o lugar dos meus sonhos eternos, dos dias em que ainda não sabia, da vida que saboreei em algum momento, antes de nascer para estar!
Ainda não sabia, mas havia sede de contar.
Contar, como se conta um, dois, três. a matemática crescente.
Lebuno era nosso cavalo, ocupava um lugar de destaque, abaixo de nossa casa. Entre gramas, frondosas árvores e vegetações rasteiras. Seu pasto era imenso, Tinha um rio só para ele.
Até as galinhas estavam vibrando de felicidade. Tendo um imenso ambiente, que as levava a sonharem com ninhos, com pintainhos e com seus mais belos galos.
Eram de boa aparência, andavam como rainhas, com suas penas brilhantes, seus bicos afinados, pés ligeiros, e asas velozes, poedeiras
No lagar das lembranças, esperanças
Gente simples, discretas, sem trair, nem largar. Todos na vida ao viver, todos ao trabalho sem castigo, ao castigar também havia amar.
Tudo era igual ou diferente, tanto faz
maluco ou contido, ambos vividos.
Na composição não havia meios, nem erros, nem comédias, nem agravos. Nem libertos, nem escravos.
A medida na medida,
A reza era a mesma - crendo se cria.
Alguns acolá, outros mais perto, sem a indelicadeza de parecer outra coisa que não era. Simples passageiros.
Feijão na mesa, carne em conserva, alegria dos garrotes nos pastos, boiadeiros e gado, forte agrado
Gente ensinando gente, transmissão de conhecimento instantâneo, Ouvido atento, olhos acesos e coração aberto. Prática.
A vida chamando vida, a história reconhecendo a sabedoria. Transplante de conhecimento a céu aberto.
A cidade do campo: menos gente, menos casas, menos muros. Terra a perder de vista, gente mais amável, hospitaleira de coração.
Ainda estou lá, onde se podia conviver sendo diferente, podia se colher, muitas vezes, sem plantar. Onde havia roçado, havia doação, onde havia plantação, fome zero.
Deus nos compensava com seus dias e noites, com o zumbido de abelha a colher o mel, com o paiol cheio de milho para os animais que nos serviam de alimento.
Toda noite havia sonhos, pela manhã, se plantava trigo.
Labaredas de credos e crenças incendiavam nossa palhoça, Credos de louvores e crença de agricultores, tudo pelas mãos e todos pela fé.
Não se cuidava das vidas alheias. Havia mais que vida além de nós, esperança demais a se colher, independente de quem seria, ou de quem viria ou saia.
Nossa estrada empoeirada estava abarrotada de pegadas. Não tinha muitas rodas a rodar, havia um certo gosto em andar.
Farmácias ao ar livre, bastava gostar de cheiro de mato.
Se curava dor de garganta com gargantilhas de cordões de fios e pingentes de sachês de alho.
A roça era a igreja, onde se fazia orações no plantio, cantava-se hinos na colheita e risos e alegrias de louvor ao colocar alimento á mesa.
O calor, recompensa e frio era dispensa. Geladeira, água corredeira.
Ar fresquinho, pela manhã e ar limpo no respiradouro da tarde, por onde, se via, Deus trabalhando no horizonte. Graça de graça. vento que a vida soprava.
Entre lençóis de algodão cru, a alma se envolvia, travesseiros de marcela do campo, cheirosa e delicada como nossos sonhos, embalava nosso descanso.
Tudo se complementava: água da bica, bacias de alumínio, baldes cheios de vida.
A terra, nossa madrinha, a sorte, nossa varinha, o rei, nossa historinha.
Só conhecíamos repressão, quando faltava chão e chuva e nosso plantio não vingava e nosso rancho sofria. Mesmo assim a alegria nos servia.
Onde estaria nosso quintal?
Nas obras de um destino, pássaros cantando nas laranjeiras, cotovias de dia, urutaus à noite.
O que se passa no tempo, que o passado enterra, quanta coisa nas mesmices que tudo encerra.
Ontem que seria hoje, hoje que se faria amanhã, e a manhã também passa. Quanta graça e trapaça?
Eu, que ontem nada sabia. Eu, que hoje sei ainda menos. Não sou juiz para julgar, nem judeu para negar.
Ainda faço preces, ainda tropeço nas ondas, ainda careço de memória para resgatar o futuro que se passa.
Andorinha sem vento, a voar sem direção, com poucas asas e pouca força.
Não sou fruto, apenas lapsos de flores brancas e sutis, que sonham com polpa.
Cidade mal construída entre cigarras e postes.
Um lamentar de tristeza, um guerrear sem armas, um amar sem sentido, doído.
De Veneranda, de Domênica. Muito mais de uma coisa do que de outra. O sentido despreparado, absorção seca.
A magia do saber, o acaso do poder, a distância do discernir, na propriedade que defendo, que nem é minha.
Uma agoniosa fraqueza, desdobramento de cansaço, mais afinco no que faço. Domino a arte sem ser dominado pela perfeição.
E vou, sem pressa, olhando pelas frestas.
Cruas certezas, mais certezas que dúvidas. Não vivo ilusões, sigo com os pés no chão. Descalço, sinto melhor o chão.
Hertinha Fischer.