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Lá onde aconteceu

  Busquei em vão o que não achei, a maquina do tempo não funciona. Leva-me na alça de seu estalo Já foi, foi mesmo. Em que sala se entrega,...

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O altar dos sonhos

Não significava muito. 

Só podiam se realizar em sua presença, quando, por um motivo ou outro, ela podia servi-los. E gostava disso, tanto, que, em algum momento da história, pediram que se libertasse. Libertar-me de quê? - ela pensava:

Como um rio se liberta de sua nascente, Ou como a nascente se liberta de suas correntes?

Seria como pedir que a terra se libertasse de seu eixo, que ela deslizasse para as corredeiras do precipício, que vivesse a seu bel prazer, na profundeza dela mesma, num céu inventado pela cor azulada. Seria como negar a vida. Ela estava viva e plena em seu paraíso, jamais convenceria seu Adão de que não precisaria dela e ela dele.

Mesmo que ele a acorrentasse em seu orgulho.

Eles frutificavam, assim como todos os seres viventes, deixando as suas marcas para a posteridade. Me rebelar? vocês ouviram isso?  Dar um chute em minha própria cabeça. E depois? Qual seria o desfecho da vida?  Cada um por si? E o regato que se regala em soltar-se na terra, e ela o leva em seu lombo até se encontrarem com outro,e  mais outro, até se formarem num rio.

E tudo se complementa - Eu, o rio, meu esposo, os frutos da nossa união. Sem ele só haveria eu á revelia. E á revelia, nada seria. A razão estava do lado de fora. Embora, houvesse tanta razão do lado de dentro. A razão que a escrita corrompe. Sem escrita, ela se sentia muito mais esperta. Podia ler com o coração as escrituras sagradas, Nada se faz sem união e companheirismo. Nada se constrói na desobediência da natureza. Se a natureza se rebelar, o fim será eminente. Tudo, de alguma forma, precisa ser á que veio.

Como ela podia ver com os olhos da alma -  á seu ver, coisas e fatos, de fato, precisam se compreender, ao invés de tentar esmiuçar-se em teorias. Muito se falava em educação, como se ela, sem conhecer letras, não pudesse educar seus filhos da forma correta. Era difícil direcioná-los depois de crescidos.

A lavoura, que antes, estava viçosa e farta, agora, começava a sentir a dor da terra. E ia definhando em suas raízes, até murcharem ou enfraquecerem, de tal modo, que pouco se colhia. Seu cavalo vigoroso e trabalhador, companheiro de anos a fio, caiu num descampado ao cair da noite, e morreu no dia seguinte, deixando um pasto triste e vazio para trás. Hora de fazer as malas, seu marido falou: - Como assim? Ela perguntou: 

Todas as terras foram vendidas, só sobraram um trecho ao redor de uma mata fechada, onde se ergueu uma outra casinha, agora um tanto mais sofisticada e dengosa, feitas com tábuas largas e novo piso de terra batida.

Seu lugar, aquele lugar tão amado entre bananeiras, foi deixado parta trás, esquecido no tempo, como se fosse um trapo velho que não mais faria falta. Mas em seu íntimo de rainha, aquele castelo jamais sairia de sua lembrança. Quantos momentos bons, quanta honra lhe dera. Ao fechar a porta para ir embora, ela chorou de tristeza, agradecida por tantos anos de acolhimento. Pediu perdão por precisar abandoná-la.

Outra historia se desenrolava. Agora, como desbravadora de um lugar desconhecido e frio. O lago ficava bem mais perto de sua casa. Embora viçoso e rápido, era só mais um. O que realmente corria dentro de si, era saudade.

Uma saudade hospitaleira, que pedia cadeira para sentar, que parecia uma amiga sincera e pura, dando-lhe tantas possibilidades para chorar. O Tempo! ela pensava: o tempo vai dar conta.  Mas, a ruína em tantos lugares pelo qual passava, já ia mostrando, que, tudo ao derredor, um dia, sofreriam mudanças, aquela mudança que ela não gostava. Seus filhos crescidos, já tomavam seu lugar no rio, na casa, na roça, e até no jardim. De repente, se via sem serventia. Tinha só quarenta e dois anos de idade, não era possível, que, com essa idade, já lhe destronariam. Sua coroa estava sendo arrancada pelas mudanças que insistiam em acontecer, botando em xeque seu próprio querer. Não havia mais crianças a pedir colo pela manhã. Seu marido, já um tanto envelhecido, fazia questão que descansasse. Não queria que ela ficasse sobrecarregada como antes, então, colocava os filhos e filhas para fazer todo serviço que era dela. E foi assim que seu estado de saúde piorou. Sem função, destronada, longe de sua terra e sem a coroa que á destacava, mais parecia uma peça sem valor.

Sentada numa cadeira velha e quebrada, via a chuva vir e passar, as folhas, antes tão brincalhonas e felizes, agora, não passavam de vultos a despencar de alguns galhos falidos, Não havia mais cidade dos sapos, apenas um riacho feio e desmoronado, á jogar-se de um barranco, querendo morrer. E o pior pesadelo foi quando seus filhos foram embora, sumindo no pó da estradinha de terra, um a um, se distanciaram. Ficava por horas, a esperar seu marido chegar,  já não vinha para almoçar, trabalhando com comércio, geralmente, fora de casa. As galinhas iam sumindo do terreiro, ou eram vendidas ou comidas em dia de domingo. Já não havia milhos para tratá-las. Ninguém para consumir seus preciosos ovos. nem motivos para se fazer mais galinhas. Então, a arte de fazer foi diminuindo, e arte que não se pratica, se esquece.

As amigas mais chegadas se distanciaram, algumas morreram e outras se mudaram. Uma ferida se abria no coração, E a solidão, tomou posse do lugar. Mas,ainda havia resquícios de tempo, enfraquecido, mas, havia. E ela aproveitou.

Abriu sulcos na terra como quem abre o coração para o amor. A terra recebeu a semente e a semente se revelou. Em pouco tempo, o seu tempo foi preenchido por cores verdes vibrantes. Talos de cenouras se ergueram, orgulhosamente, sobre a terra. E todo dia recebiam o mimo da rainha mãe.

Estavam viçosas e pareciam saborosas ao paladar.

Mas, o tempo, há esse tempo, tão fugaz, soltou-lhe as mãos, antes mesmo da ultima colheita de verão. E ela se deixou ir - como quem precisa, como quem quer, como quem se deixa. e no derradeiro dia, quando já sua forças foram se limitando, ela ainda achou alguma força para voltar em sua velha morada. Sua casinha não estava mais lá. Apenas rastros deixou, Como se precisasse ir embora, depois que ela se foi. Um livro aberto e escancarado se abriu no lugar, á contar a historia da rainha que por lá passou, nem mesmo o pasto de seu cavalo resistiu. Nem as bananeiras, nem os amigos pés de ingazeiros. Tudo se tornou vazio. Um vazio repletos de memórias já sem valor para alguém.

Ela voltou para a sua nova morada, que também jazia no mais profundo silêncio. 

Nem o vento parecia querer sondá-la pela tarde já transbordante. As aparas do tempo  a deixou quase a sumir dentro de si, tudo o que ele tecia, tão gentilmente, agora. desnivelava -  envelhecido e distante. Um sumidouro de luzes e esperança, engoliu com suas grandes e suntuosas bocas toda a beleza que havia. E suas crianças, que não eram mais criança, as vezes, lhe faziam um visita, tão rápido como aquele tempo que passou. 

Num dia qualquer, sua preciosa vida se esvaiu por completo. A tristeza lhe trouxe uma doença incurável, que só não havia despertado antes, por causa de sua coroa. Ela a amedrontava com sua pureza de espírito, que foi sucumbindo entre as frestas das sombras, até que ela própria se transformou em ser de luz, quando não mais precisou do apreço alheio para existir. Tornou-se a rainha de todo lugar onde passou, no castelo de sonhos que nunca se finda, uma coroa eterna sobre o altar do lugar. Ainda  vê, quem passa por lá. Um lugar povoado, repleto de magia. Um pedaço de terra que nada cresce; em volta, a coroa protege o lugar de Tereza Maria. Que foi mais do que uma mulher comum. As cenouras cresceram, formaram-se e foram vendidas para pagarem pelo pedacinho de terra ao qual descansou para sempre.

Fim

Hertinha Fischer












segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Esperança - Pôr em poder

 O que ela conhecia da vida.

 Enquanto nos rádios se falava em taças de vinho, ela segurava sua caneca velha de alumínio , sorvendo feliz seus goles de água da bica. Nem tão fresca, mas, suave, como qualquer bebida sofisticada da qual ouvia se falar.

Costumava se embriagar em alegrias colhidas nos quintais. Em seu íntimo era a princesa do roçado, no qual seu príncipe se exercitava e lhe incumbia de fazer-lhe companhia. As árvores que rodeavam sua casinha lhe pareciam tão simpáticas e acolhedoras, como se tivessem nascidas com ela, no mesmo dia, na mesma hora e com os mesmos sentimentos do existir.

Quando o vento as tocava com seus frenéticos halitos, a invisibilidade amorosa se fazia ver em suas folhas verdejantes a dançar. A fazer amor com delicado ênfase de vai e vem, gritinhos de prazer podiam ser ouvido e sentido pelo ar que espalhava volúpia ao derredor. 

Ela ouvia extasiada aquela frenética conquista, até que inflamasse os sentidos e a chuva chegasse de mansinho, povoando aquele lugar com a magia das gotas prateadas, cingindo o ar com pureza, despejando flores a desabrochar pelos cantos. Rouxinóis cantavam nos arredores, borboletas faziam parte da festa, e os sapos despertavam em sua cidade de banhado, coaxando a chamar pelo amor.

Modesta estava por dentro, por fora, uma ostentação em beleza, uma coroa banhada pela luz do contentamento, acendida com pavios de préstimos e bem querer pela composição das coisas. Tudo fazendo parte daquela maestria, sintonizado pelo espaço tempo, e ela fazendo parte. 

Alguns torrões de terra se soltavam com a água que se esparramava em seu quintal, vindo de longe, como uma visita desejada, deixando seu rastro ao ir embora. Era hora de fazer farra com a enxada. Bastava tirá-la de seu lugar e colocar as mãos abençoadas sobre ela, que já a ouvia cantar. Formavam logo uma dupla afinada. E no Rep-rep se complementavam.

O lugar, aquele lugar, onde tudo era festa, até as madrugadas recebiam recompensa, quando o galo as saudava com seus cantos, assustando as estrelas que já sumiam do céu. Acordando suas galinhas despertando-ás  com a Flamula invisível a balançar sobre as asas. Um alvoroço de sons e melodias enchia o ar de satisfação. E a cama a expulsaria para mais uma etapa.

As macias palhas de milho, juntavam-se com alguns frágeis galhos secos, a iniciar o fogo precioso. Madeiras de fibras um pouco mais intensas, iam se incumbindo de fazer o fogo mais fogoso. Até que se formassem grandes labaredas, pronto para lamber com força o fundo da chaleira, que se uniam para despertar a água que deveria se esquentar. 

Quando alcançava a estrada de terra sobre um sol forte a fustigar-lhe a alma, achava sempre um meio de compreender e achar bonito o modo em que vivia. A chinelinha que lhe acudia a sola dos pés, ante as pontiagudas pedrinhas miúdas que tentavam machucá-la só para ouvir os seus gemidos. Gostavam de sua presença só para saírem de seus estados vegetativos, quando em grupinhos, formavam o que chamavam de viver inutilmente. Só quando ela passava com seus suaves passinhos é que sentiam que estavam ali. Podiam sentir-se vivas e deslumbrantes a saltar de um lado á outro.

Via então o marido a sumir entre capins. quando a força das mãos decepavam-nos rente ao chão, transformando suas tramas em pó. Entre meio, surgia o roçado, que no fogo se consumia de todo, até que se fizesse a dança da terra, a se remexer em suas entranhas, até poderem suportar as sementes dentro dela. E novamente, a vida despontava entre os torrões, na suplica da fome, na coerência do crescer.

A formosura do tempo da colheita, que o tempo enfeitara de grãos, não, sem antes, a comporem com flores. Não conhecia rimas, mas versos e poesias enchiam o ar.

Um silencio povoado de cores, de prosa, amores, cantos e contos - em asas de passarinhos, em cidades de sapos e formigas, em elos demandando, em elos sucumbindo antes seus olhos serenos.

Uma pessoa, pensava: -  Uma pessoa e sua família. Uma família que seria pessoa, uma pessoa que se formara família. Mas, que, de outras famílias saia. 

Um a dois. dois em um. Compondo uma só orquestra. 

E as noites chegavam perenes e mansas, prometendo descanso, as cortinas da labuta se fechavam e as lamparinas a querosene escurecia as narinas, alumiavam apenas o que vieram para alumiar- a saber: nada menos que os pés.

E a cama chamava, absurdamente afável em seu canto de misericórdia, chamava para o descanso final, enquanto afagava com as mãos pegajosas e frias, as pontas e o coração do travesseiro, até que a cabeça se encaixasse. Só depois de muito custo e viração é que a mente dormia.

E quando dormia ainda se via a trabalhar em sonhos. Era a padecida senhora, que desconhecia prazer, mas, que de prazer se doava.

Certa hora em que havia festa na vizinhança, se viu a vestir uma calça, abandonando seus vestidinhos surrados a descansar na cadeira. Saiu saltitante ao lado dos filhos, uma calça da cor de ovos de Nambu, tão roxo quanto. Bem ajustado em seu formoso corpinho. Estava tão bonita que nem se deu conta do olhar de zanga que o marido colocou sobre ela. - Volta para casa, ele dizia: - Não quero te ver vestida assim. Parece uma menina solteira, e já está casada faz tempo. Ela pestanejou calada, como se o algoz pudesse furar seu olho. E voltou-se para o quarto, sem nenhuma vontade de obedecer, Mas, o que faria sem ele? E como viveria sem aquele olhar de reprovação que, as vezes, a colocava em xeque. Mas, não podia reclamar, por que ele tinha aquela sobriedade de vestir, e ela tinha que respeitar.

A noite, já despida de qualquer aflição, despejava todas as frustrações para debaixo do travesseiro, enquanto o marido a supria com carinho. Talvez, mais uma gravidez a vista, quem saberia?

Os dias lhes contava as horas, que nem de horas sabia, apenas aquela sensação de poder se escorrer por entre os dedos. A vida lhe dava e as vezes tirava.

O silêncio povoado de suplica, o olhar que dizia tudo, e, as vezes, um conversar solitário.

Já não podia voltar atras, atrás não havia. Ou estava no lado direito, ou não haveria mais nada. Até o rio lhe parecia orgulhoso e cruel, as vezes, ambicionando sua posição - a morrer de inveja quando ela subia o morro, e ele só poderia correr para baixo, Então, ela entendia de si.

Tudo estava no lugar, até o chapéu de seu marido ficava, por horas, pendurado num prego, a vista de todos, só esperando a hora em que seria solicitado. Então, por que ela não? Por que estava tão incompreendida em seu lugar, se todas as coisas se compreendiam no zelo. Se colaborar significa aceitar, nada mais do que ser  e fazer o outro feliz, Não mais como um galo velho a espantar suas galinhas com o bico, mas, como um galo consciente, que as ganha, arrastando suas asas no chão e dando-lhe o que comer, enquanto as enquadra para ganhar e não perder.

Já deixara seus pais e seus irmãos, todos, a notável arte de viver suas próprias vidas. È para isso que nascemos, para deixar a casa principal e construir a nossa historia sobre nosso próprio domínio. Zangão e abelha, ovos e filhotes. E o cuidado ao meio.

Cuidado, disso ela sabia, não aquele cuidado falado, que se resvala  em si, mas, o cuidado, que se amplia além da mediocridade do poder. Além da recompensa, além do pódio, mas, da capacidade de competir com o dia, da suas próprias mesmices. Vivemos das mesmices. 

O que o avô fez, o filho faz e o neto acompanha. É assim que a inteligência ensina. É assim que os elefantes procuram água e comida, por caminhos, que, de antemão, alguém já teceu. Sempre ouviu falar dos trilhos dos animais. Muito mais fácil, tomar para si, algo que já foi domado, do que ter que lutar contra o desconhecido. É a mesmice complacente. O ensino ensinando; as falas -  o comportamento - até as águas foram ensinadas a se transformarem. Como tentar ser diferente em um mundo todo igual, vestido de competência para agregar valor a subsistência dos seres e das coisas que se complementam?

 

A campina, o ar, as paisagens, ela, seu marido, os filhos. depois virão as noras, os netos. E o trabalho.

Alguns pilares a segurar as paredes e os telhados,

A sua casinha tão pequenina, cheias de buraco, que em noites enluaradas, lhe sondava o espírito, inerte, dentro de um corpo adormecido. As andanças da mente, enquanto descansa. Os sonhos que se desvanecem ao amanhecer. A vida que pulsa as escuras, a esperança que não cansa. Tudo faz parte sem que precisemos nos esforçar. E casamento é isso. Nada mais, que, simples esperança na passagem dos dias. Tudo ou quase tudo se desintegra no tempo.

Enquanto pudesse resistir, ela ficaria em pé diante dos obstáculos, a cuidar do que seria dela, a cuidar do que dependeria dela. Já não mais como dona de si mesma, mas, como Senhora absoluta das coisas e dos momentos, que, por ocasião, poderia não ser do seu agrado.

Se pudesse se fortalecer, as visões teriam a mesma força, poderia ver as coisas e fatos como simples coisas e fatos. Sem melodramas ou outra forma de subtrair.

A coroa que lhe serviu, seria a mesma coroa que sempre serviria, mesmo que fosse trocada, ou mesmo que não servisse mais, nunca deixaria de ser rainha em seu trono de papel.

As letras que seus filhos tentaram-lhe ensinar, não passava de rabiscos indecifráveis que não diziam muita coisa que ela já não soubesse. Escrever é um ato de compreensão já compreendida. Algo que se ensina mais para registro do que para vivência. Seu quintal estava mais para um hábil professor, do que, a escolinha distante. Lá ela aprendera os nomes das plantas, sem nunca lhes terem ensinado. e dera nomes a cada um de seus filhos, como se tivesse tudo registrado no coração. E seu útero sempre teve as respostas. mesmo que não soubesse de onde viriam seus filhos. Eles se formam de quê? De onde tiram proveito? Se nascem desse corpo pequeno e se tornam grandes, Não seria mérito de alguém que não fosse eu?

Por que haveria eu de me preocupar?

Tem quem pense que cidade deve ser construída ao redor de um rio. E é o que afirmo que é. Todas nascidas de viajantes despreocupados, que por um motivo, ou outro, precisavam descansar. e o comércio seguiu o mesmo curso. Onde tem gente, tem consumo. E onde tem consumo, ha uma grande quantidade de gente. E somos consumidos pelo consumo, que, nos consome a vida, que mantém a vida valendo.

Ela tinha a chave no mundo, entranhadas nas bananeiras, que imponentes traçavam o seu espaço, abrindo todas as possibilidades de sentir-se livre entre elas. Pequena e subjetiva presença entre tantos galhos viventes, que, engordavam a cada pancada de chuva, e se esverdeavam de prazer ao sair do sol.

Suas hastes severas se erguiam, seus cachos sublimes empoleiravam em seu pescoços gigantes, assim como ela, agora, plena de vida, ansiava por mais vida.

E estava ciente que teria pouco tempo, seu pequeno corpo definhava, mas, por dentro, tudo crescia.

Uma vontade descomunal nascia daquele lugar. Uma corrente de elos resistente: as estradinhas que ela amava e que amava a sua presença. As folhas de outono vinham a voar com o vento, trançado-se em seus cabelos cacheados e negros, fazendo parte da festa, dançantes das horas vindouras. E o baile dos pirilampos em noites de verão, que enfeitavam os ares com suas luzes cintilantes entre as folhas do bananal.

Não era sobre viver.

Era a própria vida a pulsar nos montes - nas serestas dos seres noturnos -  na orquestra dos mundos dos sapos, nas auroras boreais do coração e .... ela,  á sondar a vida nos campos, enquanto, dentro dela, vidas cresciam...

Hertinha Fischer




























sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Corpo produtivo, amplitude da alma

 Ao redor da mesa se encontravam seis cadeiras, todas ocupadas pelos cinco filhos e o patriarca, ela, como sempre, mastigava alguma coisa, como um pedaço de carne de porco, em pé.

Em pé, como literalmente, sempre estaria. Em pé para eles, com eles, sempre!

Não precisava fingir que estava incomodada com a situação, a sétima cadeira não lhe fazia falta, afinal, quem se importaria que estivesse em pé, contanto que estivesse presente.

Olhava seus pequenos, mastigando vorazmente a comida que preparara com esmero, seu marido, que quase não falava, também nem precisaria, parecia orgulhoso demais a devorar a sua porção.

Depois, como sempre, tiraria o conga surrado, deixaria ao sopé da soleira da porta da sala, e descalço, iria pro quarto, para tirar a soneca da digestão. Enquanto ela, ainda precisasse tirar a mesa, buscar água no rio, encher duas bacias, para lavar e enxaguar a louça suja.

Como levar a questão tão a sério, pensava:

A suave canção que lhe vinha a cabeça ao descer a ribanceira até a bica, se transformava em alegria no coração, que de cansaço esquecia.

De vez em quando, tinha um filho a lhe dar atenção, uma risadinha aqui e ali, como se festejassem algo através de brincadeiras e risos, que, para ela, era a gloria em pessoa. saíram de mim esses serezinhos espertos, como não amá-los, embora me encham de trabalho.

E assim o dia era comido, como se come uma bolacha feita de água e sal.

A tarde, o mesmo se repetia, só mudava o fato de que o marido precisaria de uma bacia com água morna, onde apenas se lavava antes do jantar. E os filhos, também usavam da mesma ladainha, passavam rapidamente os pés na água da bacia, depois saiam a pisar no piso de terra sem usar sapatos. Mas, ela não se importava, seus filhos, cresceriam fortes, se tivessem menos conversa, Então, banho mesmo, aquele onde se lava até os cabelos, as vezes necessitando até de bucha, só nos finais de semana,

quando ela  os pegava de jeito.

Aliás, fim de semana era o mais felizes dos dias, quando, seu marido tirava folga da roça, ia para a cidade, montado em seu cavalo fogoso, parecia um rei em cima do alazão, com suas vestes talares, engomados a ferro com brasa. Limpo e cheiroso como nunca, a ida a cidade lhe fazia bem. Enquanto, ela ficava a vontade, sem se preocupar com o sol e suas horas enfadonhas e firmes.

A comida geralmente era um pouco mais simples, Não precisava se esmerar na cozinha, as crianças não tinham luxo para comer. Ela fazia um mexidão com as sobras anteriores, e, eles se esbaldavam de comer bem, diferente de todos os dias. A tarde o marido traria salsichas ou outra guloseima para o jantar, Então, embora ainda trabalhasse sem parar, dava para relaxar em um banho quente, enquanto as meninas mais velhas puxava os mais novos para brincar.

 Que luxo se tornava o fim de semana.

Domingo era mais prazeroso ainda, quando, depois de um almoço mais elaborado, o marido saia de casa para passear, sozinho. Ia até a venda assistir futebol no campinho. E também lhe dava aval para ir onde quisesse. porque nem tinha muitas coisas a se fazer sendo mulher. Então, saia para fazer visitas a alguma vizinha.

 E ficavam tricotando até o entardecer

As crianças sempre com ela, cinco cabecinhas compondo a fila nos trilhinhos entre a mata. Ela na frente, sempre preocupada em defendê-los. Se preciso fosse, se algum perigo se revelasse, ela o atacaria com unhas e dentes, embora não os tivesse. Usava dentadura e as unhas estavam tão desgastadas com o trabalho ardiloso que as consumira até o cabo. Mas, guerreira como era, não deixaria barato -  do coração sairiam unhas que escorreriam  pelo corpo até estacionarem nas pontas dos dedos, e mesmo com dentes postiços, estava claro que os usaria.

Era adestradora de perigo, especialista na arte de fazer nascer.  

E como se especializara nisso -  seis anjinhos saído dela mesma -  seis espécimes com a mesma força e potência, embora estivesse ainda compatível com cada idade.

Dentro dela havia uma sensação de poder -  um poder de estar no mundo, como um ser vivente, experimentando o habitat, desvendando a potência da força que a impulsionava. Nada parecia tão maior que ela, embora fosse de estatura pequena. Só o seu marido parecia maior que ela, tão maior, que lhe metia medo.

Mas, era um medo respeitoso, por que havia respeito da parte dele, quase que nem precisava falar, ela reconhecia-lhe o desejo pela forma de olhar.

E iam se entendendo.

Certa vez, perderam uma criança na cidade, embora, a cidade fosse pequena, parecia uma imensa cidade, Não era como a cidade dos sapos, que a noite se faziam festas. Era cidade de gente. Parecia formiguinha as quartas feiras, que, ironicamente era dia de feira. Estavam indo visitar um tio, e o gargalo dos transeuntes engoliu uma delas. Não se sabe em que buraco caiu, mas, caiu em algum lugar e se perdeu.

E só se deram conta da perda na hora do almoço. É claro, só podia - somente nessa hora é que contavam as crianças. - Cadê a menina do meio?

E saíram no desespero, mas ela ficou a soluçar, ainda sentada onde estava. Tinha uma coisa dentro dela que a deixava travada. A impossibilidade de controlar os acontecimentos. Já via tudo em nuvens densas e negras, como se também pudesse ser engolida por ela. A cidade a assustava, pensava consigo mesma:

Se sair daqui, é bem provável que daqui a algumas horas, sou eu a procurada... E ficou esbravejando consigo mesma.

Depois de muita procura, a menina apareceu, com seus olhinhos arregalados, sem pronunciar uma palavra. Por pura sorte, a menina herdara a inteligência da mãe. Quando se viu perdida, sentou-se diante de uma porta azul, a unica lembrança que tinha da casa dos tios. E esta casa ficava bem próxima e na mesma rua, então não foi muito difícil encontrá-la.

Nada foi-lhe dito, por que não tinha culpa alguma, a culpa foi do pai que não lhe segurara as mãos.

Mas, a mãe estava um tanto enfurecida, embora tivesse o habito de se calar. Como sempre, o silêncio não corrompe a língua e alivia o momento seguinte.

De letra, pouco sabia, mas, o pensamento era bem rico e sofisticado, como ela sabia das coisas. Só Deus explica.

Na labuta de todo dia, sua atração estava ao redor de sua casinha, lá onde nunca se perdia, Embora houvesse uma multidão de arvoredos, nenhuma criança se perdera por la.  

Não havia regras, mas as regras, mesmo assim, eram obedecidas. As coisas e fatos sempre contribuíam para um bem comum. Como falar de coisas complicadas, se tudo o que conhecia era tão simples de lidar. Até mesmo o andarilho, que de vez em quando parava para pedir comida, com aquela cara suja e o corpo fétido, nem era tão asqueroso assim, pois, nunca se revelava perigoso. e perigoso nunca foi

Que alegria existia naquela terra.

Tinha panelas e xícaras que serviam as refeições, tinha o cavalo no pasto a relinchar ao amanhecer, tinha o milho a debulhar para as galinhas. E inteiros -   eram servidos aos porcos e ao cavalo, que tinha muito mais que tudo aquilo.

 A paz branda de sua presença

Uma rainha de olhos meigos, cabelos negros e encaracolados, brilhando sobre a luz solar, aureolada por guirlandas de flores silvestres, perfumada de amor. Num deserto de sal, onde nada parecia insipido, mesmo ante a tantos platônicos desejos.

A criancice já á havia preparado para aquele trono invisível

No rio que se encontrava longe de casa, a água limpinha escorria sobre a bica de caco, sobre a madeira se deixava ajoelhar, e como quem ora a um Deus desconhecido, as roupas são esfregadas com gratidão. Lentamente o dia ia indo embora, a roupa tirada da guaração, já podia se ver limpinha, como uma oração já atendida,  Pegava então a bacia, erguendo até a rodilha que já estava sobre a cabeça. De um lado da mão, um balde com água, do outro lado, um filho enroscado. E ia se equilibrando de passo em passo, como um anjo que tudo pode.

Até alcançar o topo do morro, surreal quadro pintava.

Ah! a vida, que Divina obra, quando esmera-se para torná-la ocupada, a cadeira, as vezes, só infla as nádegas, tornando o corpo mais flácido e a doença mais perto.

Quem disse que a humanidade ficaria satisfeita com maná  no deserto-  Todo dia a mesma coisa, o mesmo, sabor, o mesmo cheiro? Quereria, novamente, mesmo que fosse em regime de escravidão, a diversidade do Egito.

As espigas de milho na roça, a abobreira com suas flores, a amendoeira a lançar suas sementes na terra, ao alcance das mãos. Tudo isso almejaria sem piscar.

Ela, por sua vez, mesmo sem muita disposição, levantava para a vida que pulsa em seus favores. Que a impede de apenas existir e pronto. Cultiva, limpa, cuida, colhe, enfeita mesa e estômago, e recomeça a criar de novo e de novo, sobre um ciclo inesgotável de amor, de esperança e consequentemente de satisfação por continuar sendo produtiva.

E foi.......


Hertinha Fischer












terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Gnê - a virtude de fazer nascer

 Se veio aqui para conversar, então, por que não me deixa abrir a boca?

Não gosto de jogar conversa fora, mas, também não gosto de monólogos.

Se é para conhecer-nos, deixa-me contribuir com minhas deixas.

Só ha um meio para se chegar a algum lugar, indo!

Visitas só são boas, nas horas de folga, com muito trabalho, só atrapalha, a menos, que

se converse trabalhando!

Gosto de estradas, mas só quando ás como com os pés. dentro do carro, só me vem a sensação de perigo.

Só viajo na imaginação, os lugares me parecem tão iguais.

Fico horas de olhos fechados até que me cheguem sonhos, então, me desperto para eles.

Amo a hora de dormir, ainda mais quando durmo depressa. Tenho a sensação de que o sono me leva a lugares que nunca imaginei. Lá onde realmente existe paz.

Meu marido é meu amigo, embora, amigo não faça o que ele faz, nem de longe um amigo pode ser leal como meu esposo o é.

Tive dificuldade em ser mãe, embora, tenha sido mãe por seis vezes. A responsabilidade assusta,

Fui demasiadamente sensata na educação dos meus filhos, Tanto que aprendi mais com eles do que eles por mim.

O trabalho me cansa, mas, me dá uma sensação gostosa de poder.

Andar significa, para mim, uma fuga. Fuga das mesmices diárias, de ter que amar fogões e vassouras.

Comer é bom quando se está com fome, do contrário é  como inflar o balão, até que quase estoure.

Um pouco de preguiça até que é bom, desde que não nos deixe pobre.

Ela divagava em frases feitas, para não se perder em suas próprias cobranças, analfabeta de nascença, mal sabia o que significava ordem nas letras. Só conhecia os hábitos por assim dizer, aquilo que se fazia por dias até virar necessidade.

Aprendera a inspirar-se com os galos, que as galinhas despertava de madrugada com seu canto enfadonho, que de musica pouco sabia, assim como ela não entendia de letras.

O canto do galo a induzia a sair da cama, mesmo sabendo que poderia dormir mais um pouco, Toda mulher virtuosa acorda de madrugada, pensava:

Era mãe, e mãe que se preze, sabe de suas responsabilidades. 

Tinha lenha e fogão, agora só precisaria despertar o fogo, e o fogo despertaria a água para formar um bom café. Quando suas criancinhas despertaria para mais um dia de alegria na roça.

Seu adorável marido, o único homem que tiraria ela do sossego, antes de lavar o rosto no riacho, ele lhe pediria a toalha e o sabão.

Depois encostaria a traseira na soleira da porta, daria uma surra no sapato batendo-o ao chão, até que soltasse toda a terra de dentro, para depois, entrar com os pés.

Sentaria a mesa para o desjejum, rodeado pelas crianças em silêncio a comer pão amanhecido, após, sairia com a foice nas mãos ou a enxada, para mais um dia de trabalho.

E ela iria pro rio, com a bacia cheia de roupas sujas em cima da cabeça, com a ajuda da rodilha que lhe  auxiliava no equilíbrio, enquanto levava o filho mais novo enroscado na cintura.

E mais uma vez, se lembrava de alguma musica que lhe acalentaria na vida árdua de uma mulher casada.

Nunca pensara em casar, mas, na época, não casar não era uma opção. Mulher solteira por muito tempo era vista como uma mulher não benquista. Uma mulher desmerecida. Algo sem valor, sem utilidade, Um fardo para os pais.

Mas ela conheceu o fardo de um casamento.

Pensava que o casamento só era bom para os nobres e com dinheiro, As damas da sociedade que só sabiam gastar e andar bem arrumadas. Para ela, só sobrava cansaço.

Na cama a noite lhe sobejava alegria, a única hora cheia que lhe pertencia absolutamente.

E absolutamente lhe concedia descanso. E absolutamente descansava.

O fogão a crepitar demandava lenha, e lenha não nasce no fogo, nem embaixo do fogão - é preciso procurar, achar, trazer, cortar e armazenar, até a hora de fazer tudo outra vez.

E a hora da refeição é sagrada, pelo menos para meu marido, que tem hora para tudo, embora, não tenha a sabedoria de decifrar as horas em um relógio, ele conhece bem o andar do sol, e eu também precisei conhecer para não perder a hora.  Meio dia em ponto ele chegava com fome, e se a comida não estivesse pronta, ele me culparia , ao invés de culpar o sol. 

Ta vendo como é difícil viver no mundo analfabeto. Mas analfabeto mesmo é quem não tem olhos para enxergar.

E ela se valia de tudo.

Pela manhã, quando todos já estavam arrumadinhos para atender o dia, la estava ela, calçada de chinelinho surrado, indo para o rio outra vez. Andando sobre o trilho de terra, as plantinhas rasteiras, lhe relava nos pés, como quem queria prazer. E o prazer era recíproco.

Não falavam de amor, nunca ouvira um som sequer balbuciando essa palavra, mas não precisava, a sua presença tão pequena e meiga, o cuidado com as coisas, com os filhotes e com o marido revelava bem mais do que simples palavras.

Havia um conto inteiro o dia inteiro resplandecendo amor em suas atitudes. 

A primeira a saudar o dia, a ultima a dizer-lhe adeus.

As galinhas sentiam seu cheiro, quando, pela manhã, saia com uma espiga de milho nas mãos, lá vinha elas a correr ao seu encontro, batendo as asas felizes quase a tocar-lhe as mãos com os bicos.

Tudo se harmonizava através dela, tudo era esperança através de seu cuidado, tudo dependia dela naquele lugar.

Não havia festas de aniversário, aliás, nem se lembrava de comemorá-los, não dependia de calendários, tempo para ela, era dia e noite. E quando diziam que em certo dia de dezembro era natal, então se esmerava em fazer um banquete que não faltaria sagu.

Natal e pascoa, dois dias de comemorações no ano, que simbolizava,  também, o aniversário de todos. Um contava o começo do ano e outro o final, os restantes dos dias era contado pelas labutas incansáveis de uma mulher que nunca reclamava.

Parece contos de fada, mas, não é.

Era uma vez uma rainha, que, por sua vez, nem castelo tinha, mas que de coroa entendia. O dia era rei, o fogão, seu restaurante, os porcos e as galinhas seus súditos. Se marido era seu braço, os filhos seu coração.

E ela, o centro de todo funcionamento.

Hertinha fischer
















domingo, 2 de janeiro de 2022

Poeticando

 Gosto de silencio, mas o barulho não larga do meu pé, ou melhor, é só

do que meu ouvido precisa.

Silenciar é sentencia-lo a morte.
Ouço o silencio em murmúrios,
cochichando palavras e rimas,
como pássaros a conversar com musica.
Assim como uma estante repleta de livros
sem ter quem o tome, cheio de vozes,
dentro de num silencio de matar.
Ha vozes no vento que só as folhas ouvem,
ha declamações nas nuvens que só o céu conhece,
ha rimas nas águas, que nas margens desbarrancam,
ha poesia no ar, que só os ventos compreendem,
ha poemas no céu, que só as estrelas atendem.
Ha composição na vida, que só olhos se apercebem,
ha risos no mar, que só a areia recebe,
ha uma harpa a tocar, que só as florestas concebe.
Hertinha Fischer.