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Lá onde aconteceu

  Busquei em vão o que não achei, a maquina do tempo não funciona. Leva-me na alça de seu estalo Já foi, foi mesmo. Em que sala se entrega,...

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Mãe dos pais

Sessenta anos já se passaram como se passou o ontem

Ontem da criancice, ontem da juventude, ontem dos felizes, ontem dos arroubos, ontem da cria, ontem  do crescimento. Ontem da minha colheita, hoje da colheita dos colhidos. Sou avó.

Como descrever tamanha benção. Como explicar esse sentimento, crescente, que tem mais a ver com o que se passa, não mais, com o que passou. O tempo á meu favor.

A arruela bem colocada num parafuso de ferro fundido que atravessou uma era, Junção bendita.

Como se multiplica sonhos em muitas noites de sono, 

Um menino, dois meninos. Uma beleza que rima com sorte, com emoção, com fé.

Assim, tão aconchegante, quanto se cobrir em noites frias, ou calçar um sapato após andar um dia inteiro descalço.

Ser avó é saber-se vencedora. É vencer e ser vencido.

Tendo nos braços um pedacinho já construído com o acabado e transmitido. A beleza da obra completa. Um trilho levando seu trem.

Sou avó e me sinto jovem por dentro, mesmo já repleta de idade, parece que a força volta com força, O colo novamente preparado para mais um amor.

Hertinha Fischer








domingo, 23 de abril de 2023

Fascínio de uma vida


Nunca gostei de beleza fabricada.
Amava o cantar do monjolo de Dona Vicentina a contar seus poemas enquanto triturava o milho.
Arvores suntuosas achegavam as bordas para cheirar o levedo.
A anfitriã em seu banquinho de madeira talhada a colher seus sonhos, enquanto a mata desvendava seus mais alinhados sonhos.
Enquanto a fornalha se aquecia com as labaredas, beijando o forno, numa lânguida e terna paixão, o monjolo contava seus casos de amor com o milho umedecido. Havia muita história contada entre águas de cachoeira, numa afinidade de sentimentos que se transformava uma coisa em outra. As vestes de Vicentina estavam coesas com o momento. Como uma dama a encantar seu amor numa festa.

O doce biju, sem açúcar, açucarava-se em sua presença, o paladar ouriçava de prazer ante aquela certeza. O som do pau de pilão a tocar, com força controlada, pelo cocho repleto de água que impulsionava uma bela lição sertaneja - orquestra antiga exemplificando modéstia. Além de tudo aquilo, ainda se pensava em criança. Vicentina era parteira nas horas vagas.
 Quando uma criança se preparava para vir ao mundo, o monjolo se calava e a floresta pairava na expectativa. Logo o som supremo se ouvia entre paredes. O anjo mais uma vez recolhia suas asas para colocar suas mãos em prática. tinha o dom de trazer a vida.
Dava vida ao milho, dava vida aos seres do ventre, e, consequentemente, tratava de fazer, da farinha, o manjar que nutria mãe e filho.
Vicentina não tinha idade. sempre existiu pelas bandas do amor, conhecida aos arredores pela sua perspicácia.
Se não tinha café, fazia uma garapa de açúcar e água quente. Se não tinha muito feijão, fazia um virado com sua farinha. Mas sempre havia gente em sua casa, seja para uma rápida visita ou, simplesmente, para ter longas conversas e absorver de sua santa sabedoria.
O monjolo, as crianças, a comunidade, Seu José Santo, seu esposo, que vivia numa cama, por causa de lesões de dente de serpente, que lhe causara úlceras eternas. A casinha de barro, a cobertura de sapé, o rio que deslizava na ladeira, a estradinha que levava ao trabalho, as suas pisaduras que nutriam o lugar. O fogãozinho a lenha quase grudado ao chão, o picumã que enfeitava as paredes, a carne dispostas em varais e os gatos deitados entre panelas pretas pelas fuligens de labaredas.
Tudo isso tinha nome e sobrenome: relações humanas. Uma pessoa assim nunca morre, nunca ouvi sequer um murmúrio sobre isso ter acontecido, acho que ela se juntou aos restos de seus conhecimentos e jaz junto ao monjolo que ainda resiste ao tempo ao lado da pequena cachoeira. Assim como esta meiga lembrança que guardo em mim, como quem ainda sente os braços que me separou do ventre
 de minha mãe para trazer-me até aqui..

Hertinha Fischer

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Princípios batizados com sal

Nebuloso entardecer entre portas fechadas de prazer

Quase tudo dorme por baixo das nuvens, o silêncio toma conta do espaço.

Há uma força que encobre a luz solar, desenha-se nuvens no ar.

Arrepia-me um suave suspiro que escapa de dentro, com um suave toque de nostalgia a passar.

Enquanto preparo meu corpo para um rápido descanso, minha cabeça roda na consciência.

A procura de um lugar, se esquece o próprio, Nada substantivo será outra presença senão a sua.

Sem você, tudo escapa, sem você não há lugar.

Entende-te que de tudo entenderás.

Um rio caudaloso também encontra-se com a serenidade de algum lugar, quando, enfim, descansa

 de suas mágoas empedradas e chega na afinidade dos leitos.

Tudo se compõe, magnificamente, entre uma escolha e outra; algumas para acalmar, outras para ferir.

Um principio, um desígnio, uma aptidão. Escravo da ideia, liberto na aceitação.

Dias bons, dias maus, quase todos ocupados com ilusões.

Leram cartas e cartas foram escritas, assim como algum comediante que se foi, enquanto outros riram, depois dele, da mesma comédia.

A terra ainda guarda seus segredos em camadas, e camadas são decifradas sem que o perigo passe.

Um dilema suposto atrás do outro que também acaba, Tudo me parece em órbita á desintegrar-se no ar. Só o nada aparece de vez em vez, dizendo-se óbvio, mas é só nó sem corda. Cientista sem ciência. Teorias!

Hertinha Fischer











terça-feira, 11 de abril de 2023

Suspiro de jardins

Parei um pouquinho neste dia para olhar para o passado.

 Lá estava ele com todas aquelas lembranças empilhadas, quase

a sucumbir entre as folhas secas do destino.

Emparelhadas com a saudade que ia na frente feito vento uivante.

Um soluço debruçou na garganta, como um jovem a oferecer uma flor,

sem que pudesse alcança-lo, se foi.

Um sorriso, uma fala, uma pegada, tudo caiu no esquecimento,

quase que levou também aquele rosto tão amado, que me fazia tão bem e

que agora é como uma pintura  em aquarela, desbotada pelo tempo.

Apenas tinta escorrida  numa tela velha e uma gravura

de memória esporádica sem cor.

Quantas histórias já se contaram nesse depois e quanto mais se contará adiante,

até que se destrua, para sempre. A presença solitária dos bons momentos que se passaram

quase desapercebidamente entre dois tempos.

Foram dois tempos ou mais, quase já sem tempo estou, para registrar as linhas infinitas

desse meu desejar voltar. Precisa-se da volta ou do reencontro já que não se sabe o caminho.

E que caminho haverá, quando tudo já se tornou intransponível e deteriorado? Uma vez, que, uma convivência nunca será eterna, a menos, que, os anos não nos esmaguem. Nem haja tanta diferença entre um nascimento e outro.  Ninguém poderá ser mãe do outro, se não houver uma grande distancia de idade. 

É como andar por tantos caminhos e depois ter que descaminhar. Se perder em conhecimento e ter que esquecer. Ou, sem querer, esquecer de qualquer jeito.

Aquela alegria genuína de ser criança, de encarar a vida sem preocupação, e saber que o cuidado está do lado.

Tempo, tempo, tempo, como voa na velocidade da luz. Leva o melhor de nós para outro tempo, sendo sempre o mesmo tempo, a nos lembrar que passamos, que passam todos, e registra só para construir saudades.

E que saudade, infinita saudade, saudade sempre criança entre novos e velhos rumos....


Hertinha Fischer



















sexta-feira, 7 de abril de 2023

Roçado e realeza

 La na minha rocinha, havia casa de taipa, jabuticabeira e pessegueiro,

Havia riqueza na horta, galinhas além da conta e porcos dentro do chiqueiro
Quando alguma visita chegava, horas não se bastava, meia noite era criança, e muitos causos se contava.
Mamãe e papai se olhavam, com muita delicadeza, crianças, lá fora, brincavam, sem conhecer safadeza.
Dias benditos de toda sorte, alegria de sul a norte, vida boa sem corte, nem prescindíamos a morte.
Nas noturnas trevas, dormíamos, ao sol nascer, possuíamos,
grades não conhecíamos.
Camas em um só quarto, sala sem sofá e sem cadeira, o pilão a descansar no canto, o fogão a esquentar chaleira.
A lua era nosso guia, o sol, nosso irmão, a roça nosso sustento,
a proteção vinha de um cão.
A enxada na mão calejada, a água da ribanceira, quando o barranco as empurrava, se transformava em cachoeira.
O balanço eram as ramadas, a gangorra, uma tora, em forca, amarrada, a alegria emergia, quando se fazia gargalhada.
Sem ferir ou se ferir, tudo se consumava, nada era desperdiçado - nem o frango em seu poleiro, nem o gado na invernada.
Os sapos a fazer serenata, em cima de juncos e ciscos, encantando sua amada, A noite, musica sertaneja, e galo cantando de madrugada.
Poeira de rua de terra, machado no lugar de serra, tudo era paz, nada de guerra.
Trabalho não era problema, amor era o emblema, tudo benção, nenhuma blasfêmia.
A coruja melindrosa, na cunheira agourava, contava de algum acontecimento distante, logo a noticia má chegava.
A madrugada rompia o escuro, a gota de orvalho  secava, a cama nos expulsava e o cheiro de café despertava.
Hospitaleira as plantas, remédio que até curava, farmácia a céu aberto, ferida cicatrizava.
Horas que iam e vinham, nenhum incomodo deixava, o caminho era longo, porém, nunca cansava.
Tudo a mercê do destino - Frutos, campanas e favas. 
Eu, que nascia no meio, cavalo usando arreio, trigo virando centeio.
Arrozal brotando em águas, feijão na sombra do milho e cebola em canteiro.
Tudo puro e cristalino, loucura não existia. No plano já edificado, justiça lá se fazia.
O tempo em sua jornada, a vida levando pra frente, alma leve e alva, transbordava saúde na mente.
Santo e justo é o caminho, simplicidade é constante, nada de carro encostado, quando o pé é viajante.
Assim passavam-se os dias, devagar e sem nenhuma pressa, na escuridão se dormia, acordando com o sol em festa.
De dia, o trabalho ardia, a noite se descansava e Deus do céu nos olhava.
Hertinha Fischer