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 Me encontrei com o mundo das letras quando o meu mundo se reduzia a nada. Fui muito maltratada pelas circunstâncias que não gostava de silê...

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Como surge a memória?

Estava eu, debruçada sobre um livro, quase a morrer
de emoção, com o coração batendo forte, como
se vivesse a história.
Eu sempre fui assim, intensa demais.
Meus sentimentos são instáveis como
tempo chuvoso.
Sou como as águas de janeiro, caindo em abundância,
causando transtorno em quem não gosta.
Gosto de ouvir, de me aproximar do conto, como
quem o vive.
Sou qualquer protagonista a curvar-se em emoções
sobre uma circunstância. Sobrevivo, no entanto,
carrego marcas.
Desde que me reconheci por gente, não que não tenha sempre sido assim,
mas, de quando não tive lembrança, não posso contar.
Me lembro de fatos, um tanto nebulosos de principio, mas,
também, tão reais, de quando tinha apenas quatro anos de idade.
Morávamos num casebre á beira de mata fechada, feita de barro,
dois cômodos que me pareciam tão grande.
Um riacho, dois metros de comprimento por dois de largura,
que me parecia um mar. onde minha mãe lavava as roupas sujas.
Um pé de jabuticaba, que mais parecia um monstro diante
de minha pouca estatura.
Me lembro da sombra, da areia, da água fresquinha que nela
caia através de uma bica.
Esse quadro era o livro sobre o qual me debruçava, e a vida,
a professora que me instruía sobre as coisas. E dentro dessa historia eu morava.
A grama, o cachorro, a vizinha e suas crianças, o cipo feito balanço. a gritaria e
histeria quando havia alegria.
Pela primeira vez na vida conheci lágrimas de mãe, que não foi nada divertido.
Não entendia nada direito, mas, vi minha irmãzinha mais nova, desabar sobre o chão, 
e minha irmã mais velha se debruçar sobre ela, gritando por socorro.
A vizinha veio correndo carregando-á nos braços, fazendo massagem em seu pulso quase
com desespero.
E minha mãe chorava, a rolar sobre a grama, nada fazia.
Ao vê-la chorar eu também chorava.
Aos poucos minha irmã foi abrindo os olhos, e tudo foi se acalmando, acho que, pela primeira vez, eu soube o que era sentimento.
Dali para a frente, comecei a participar de tudo.
Formou-se de todo a consciência, despertou-me os desejos, e aprendi a sofrer.
E pareceu-me começar a fazer parte do mundo. Tinha medo de chuva, de trovões, de ficar sozinha no escuro.
Comecei, então, a entender por que chorava, a sentir dor quando me machucava, até a chorar
sem sentir dor.
Tudo me parecia tão grande: as árvores que nos rodeava, a cama que me acomodava, a escuridão da noite que me atormentava, o medo de ter que viver.
Também senti os seres, o perigo quase que eminente de uma formiga ou uma serpente.
Conheci a alegria de ganhar doces em dia de festa, também a tristeza de dias não tão bons.
Dali para a frente, senti o peso nas costas, de tudo que estava por vir.
Com seis anos de idade eu queria aprender a ler, fiz de tudo para ir a escola. Era longe, e eu ia a pé, mas, não sentia canseira, só o fato de aprender por mim mesma, tudo valia a pena.
Talvez eu já pensasse no futuro, aprender a ler e escrever foi meu maior desafio. Hoje, eu posso dizer com toda certeza: foi a melhor parte de tudo.
Aqui estou, registrando tantas memórias, de um tempo não muito distante,
que me formou e me fez.
Me sinto plena, escrevendo, como se tivesse feito isso a minha vida inteira, mas, tive que esperar por mais de quarenta anos, para poder, colocar num papel, o registro do meu viver. Assim, como se fosse fácil, mas, na realidade não é!

Herta Fischer




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