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Sorte ou destino

Tereza sentia a necessidade de aprender pelo olhar, a única maneira que conhecia, sua única escola. Seu pai, vindo da simplicidade, não sabi...

sábado, 30 de agosto de 2025

Lá se vão os vilões, lá se vem os mocinhos velhos

Perguntam-me se tenho uma boa história para contar. Tenho histórias, só não sei se são tão boas assim.


Alguns trechos foram esquecidos, outros guardados na memória, sem que eu possa contar. O que consigo narrar, ao escrever, acabo esquecendo. A melhor fase, antes dos cinco anos, não registrei. Nos outros sessenta anos, a memória guardou mais paisagens do que palavras. Não sei descrever o caminho, os córregos ou as mudanças, que foram tantas.


Digo apenas que havia, sempre havia! Um estalo de vida uivando, como lobos famintos seguindo suas trilhas. Um frenesi de saberes e sabores, vencendo e hesitando ao mesmo tempo. Às vezes, penso que é inútil revelar, como fotos antigas que acabam esquecidas nas gavetas. Minhas importâncias são minhas — enquanto me valem, têm valor. Depois que me for, alguém talvez lhes dê valor, mas não com o mesmo significado.


Pouco a pouco, o tempo nos vai perdendo, e os lugares que ocupávamos, preenchidos por outros. As lembranças tornam-se mais lentas, como o tilintar do orvalho da manhã, que mal chega e já se prepara para partir. Uma flor que o tempo toma para si, cujo perfume se dissipa ao vento.


Algum lugar me espera. Se me espera, quando? Haverá cura para essa doença chamada velhice, ou ela persistirá até que seja a própria cura? A velhice é como a infância antes dos cinco anos, sem registros. Nada é tão sublime quanto mais um dia, mais uma noite e o dia seguinte. A memória não vai além do instante. E é este instante que nos impele a seguir pelos caminhos já memorizados. Até que nos procurem nas coisas que deixamos, e, para aliviar a dor da lembrança, essas coisas sejam descartadas. Missão cumprida, partida!

Hertinha Fischer










segunda-feira, 25 de agosto de 2025

O entardecer da vida

(Talvez doa um pouco, acima dos espinhos, floresce uma rosa)


Esses dias que me desvendam,


revelaram-me em outros tempos.


O passado foi revisado,


os rascunhos que me contaram.


Vencendo as horas que já esqueci,


quando o relógio me venceu enfim,


No ciclo das mesmas horas,


um pouco de mim foi se perdendo.


A noite que mal descanso,


o dia que chega apressado,


Tempo, anda mais devagar,


pois aqui sou só um viajante.


De repente, aqui me vi


com o rosto ruborizado.


Lá se foram os melhores dias,


e já me sinto derrotado.


Sulcos que abri com esforço


agora marcam minha pele.


Meus órgãos, antes tão puros,


por dentro já me repelem.


Pernas já se esgotaram,


olhos ficaram turvos,


unhas frágeis nas pontas dos dedos,


ossos agora enfraquecidos.


Por dentro, sempre criança,


quer brincar e se distrair.


O corpo já tão exausto,


só deseja o alvorecer.


A lua pela metade,


os campos adormecidos,


meia luz, meio nevoeiro,


nos sonhos que foram perdidos.


Hertinha Fischer.







 

domingo, 24 de agosto de 2025

O começo e o fim da linha

Aqueles instantes singelos e, ao mesmo tempo, loucos por conhecimento, mergulhavam naquele mundo ainda imerso na escuridão. O sol parecia distante e frio, enquanto a lua roçava de leve a borda das sombras, quase iluminando algum trecho que nem existia.


Eu, quase alguém, enfrentando esse mundo desconhecido, entre cinzas e vestígios de fogo, apostava nesse viver morno e sem fôlego. Submergia, afogado, nas profundezas das carências, tentando ser luz ao ultrapassar as nuvens.


Tocava de leve o vazio e sentia a magia do tudo no nada que se revelava em outros que não me pertenciam. Estava dentro e, de fora, explorava-me.


O que são paixões: chamas ou apagões? Lá fora, o tempo corria, dia após dia, crescendo. Tempo que me levou sem notar, tempo que passou sem que eu soubesse.


Um presente e um futuro – um só instante, anos a fio passando no reflexo de um único luar. E o fim à espreita, até quando existir?

Hertinha Fischer









O resolver matemático da vida

Quem mais poderia me enxergar como os olhos de minha mãe? 


Era um olhar claro, cheio de amor e fé. Não podia andar com meus próprios pés, nem escolher os caminhos, mas podia contar com o calor do seu colo quando o inverno se instalava no meu semblante. 


Os tropeços da infância não deixavam muitas marcas, mas, com o tempo e a correria da vida, as quedas se tornavam mais intensas e as feridas, maiores. Fui deixando para trás as brincadeiras inocentes e entrando em um mundo perigoso, onde um vulcão de emoções explodia. 


Minhas andanças ficavam cada vez mais frenéticas, e o mundo me cercava de tal forma que eu me perdia em seu labirinto de poder. Ainda havia aquele medo de crescer – de descobrir para onde não ir, de aprender o errado, mas não com os erros. 


A arrogância da adolescência não traz sabedoria – segue com olhos entreabertos, cerrados, descrentes. Todos pareciam tão certos, tão amáveis, tão plenos, enquanto eu, meio tonta, vacilava à revelia. 


Buscava me relacionar, sentia uma urgência em ser aceita, mas a pressa me levou ao mundo das frustrações. Havia uma riqueza de palavras dentro de mim, mas a timidez prendia minha língua. Meus familiares eram de poucas palavras, e com eles aprendi a ser reservada no falar. Contudo, minha mente vagava livremente, sonhando com a vastidão dos sentimentos profundos. 


Assim foi minha entrada na vida adulta, aprendendo muito na solidão, quando o silêncio me tocava e os sonhos ganhavam brilho. Só após muitos calos nos pés e dissabores na alma, descobri que todos somos iguais. 


O que a boca não conta, os olhos revelam. Minha história não foi a melhor nem a pior, mas esteve cheia de agitação e riqueza nos detalhes. Às vezes intensa, às vezes leve e solta. É assim que a vida nos molda. 


De repente, mais próxima do horizonte. 


Hertinha Fischer








sábado, 16 de agosto de 2025

Paixão de primeira viagem

Mais um dia na roça, as mudas já estavam preparadas

na caixa, prontas para encontrarem seu lugar na terra.

Algumas mãozinhas se posicionavam, preparadas para

estabelecerem um ritual de plantação.

Uma grande extensão de terra estava devidamente aradas

e gradeadas, só faltava abrir os sulcos com a enxada.

E lá estava ela, a irmã mais velha de uma leva de cinco filhos,

que, incansavelmente, fazia uma valeta rasa, que seria preenchida

por centenas de mudas de cebola, todas enfileiradas milimetricamente,

por seus três irmãos mais novos. Com a terra que se revolvia na valeta

principal, cobriam-se as mudas, e assim, consequentemente, como um

ritual sem fim.

Vilma se destacava entre as mulheres, se tornara uma peça principal entre

os irmãos. Além de fazer o serviço mais pesado, orientava os demais no 

que deveriam ajudar.

Sonhava um dia poder viver por conta própria, poder largar aquela vida simples, onde seus sonhos eram enterrados junto com as mudas.

Mas, ainda era muito jovem e precisava aprender a andar com os próprios pés.

O próprio andava muito distante.

Os anos foram passando devagar. Cada pedacinho de terra batida continha muito mais que simples pisadas.

Sua cabecinha rodava sem parar, ousava pensar em outros lugares, outras possibilidades lhe encaravam enquanto dormia.

De repente, como num conto de fada, uma porção de terra foi alugada por japoneses. Uma família inteira passou a rondar seu espaço. A terra foi revolvida com tratores potentes, o pequeno riacho fora alargado, tornando-se um grande lago, uma carreira de canos enlaçados por argolas, subiam a ribanceira, até se entregarem, completamente, entre os sulcos da lavoura.

Um rapaz muito simpático desceu até o rio para colocar o motor em funcionamento, passando em frente a porta de sua casinha. Ela deixou escapar um suspiro de satisfação. Algum anjo lhe dizia, lá no fundo de seu íntimo que as coisas iriam mudar.

Subiu até a estrada e ficou maravilhada com aquela forma de regar. Só conhecia seu pobre regador de lata. A água jorrava por todos os lados, como um chuveiro inteligente, espalhando por sobre uma grande porção da lavoura. Depois de uma hora mais ou menos, as pessoas mudavam os canos de lugar, até que toda a terra ficasse totalmente alimentada de umidade.

Suas manhãs repletas de tarefas e cansaço, finalmente, á encaminhou para outros rumos. Enquanto acendia o fogo para preparar o café, sua alma se enchia de felicidade. Embora tivesse o rosto do dia, a refletir afazeres, tinha o coração transbordando de emoções.

Ao ouvir o roncar de um caminhão, sabia que veria alguém que a faria transportar para um mundo só dela, fazendo com que, as tarefas, antes tão angustiosas, lhe parecesse menos pesada.

Já se preparava para olhar pelo buraco da parede. Já não parecia tão desconcertante, a falta de uma parte do reboco. E com os olhinhos afoitos e curiosos, se preparava para vê-lo passar, indo em direção ao rio para ligar o motor.

Começou a tomar mais cuidado com a forma de se vestir. O trabalho na roça exige roupas simples - lenço e chapéu na cabeça e um conga surrado nos pés, mas, teve a ideia de colocá-lo apenas quando saísse, para que o moço não tivesse que vê-la mal vestida.

No inicio ele nem olhou para ela, parecia completamente alheio a tudo, mas, conforme o tempo ia passando, os olhares insistentes daquela menina, despertou um certo interesse da parte dele. Tinha acabado de completar dezesseis anos, começava a  desabrochar por dentro e por fora, sua juventude e frescor não passaram despercebido e começou um flerte silencioso entre os dois.

Hiroche já estava com vinte e um anos de idade, estava pronto para um relacionamento sério, no entanto, Vilma ainda teria que esperar mais alguns anos para que seu pai á deixasse namorar. Porém, ela sentia o coração pulsando no peito por causa dele. Muitas vezes, precisava segurar o peito com força para evitar que os outros escutassem o nome dele em cada batida.

Certa tarde, quando descia para o rio para buscar água na bica, ela ouviu alguns passos vindo em sua direção, olhou para cima, notando aquela presença maravilhosa que a fazia sonhar.

O motor ficava um pouco abaixo de onde ela estava, ela concluiu que ele estava indo desligá-lo, embrenhou-se entre a mata com muito tato, bem devagarzinho, tomando um certo cuidado para não alertá-lo com o barulho de galhos se quebrando abaixo de seus pés. Perto do tanque tinha uma grande árvore que ela e seus irmãos chamavam de árvore de galo, por ser uma árvore, cujas flores, se pareciam com pequenos galinhos vermelhos. De onde estava dava para ver o motor. 

Quando ele chegou, desligou o motor, desceu até a beirada do tanque, lavando as mãos e molhando levemente os cabelos. ela quase desmaiou ao constatar que com os cabelos molhados, os cabelos negros brilharam ainda mais, deixando aquele rosto muito mais atraente. Resistiu um pouco, pensando em sair correndo dali, mas, ele olhou para o lado e a viu. Foi se deslocando bem devagar em sua direção perguntando com uma voz bem suave: - O que você está fazendo ai?

Ela se encolheu um pouco diante do nervosismo que a apavorou naquele momento, já um tanto arrependida de tal ato, mas, respondeu com a voz controlada: - Estou olhando para você!

- Isso eu percebi, disse ele em tom brincalhão: - Só não sei o que se passa em sua cabeça!

Sua cabeça rodopiou, aquele olhar a deixou tão vulnerável, que a fez se aproximar um pouco mais e com os olhos iluminados e a boca entreaberta, se ofereceu a ele sem pensar. Foi um beijo rápido e cheio de significado, pelo menos para ela. Sentaram-se numa pedra e começaram a conversar como dois grandes amigos, ele fazendo pergunta e ela respondendo meio sem graça: -Preciso ir, ele comentou antes de se levantar, ela baixou os olhos, ainda sentindo o gosto dos lábios dele nos seus. também se levantou e tomaram direções opostas, ela voltou para a bica e ele subiu em direção a casa de seus pais.

Dias se passaram, ela o evitou o quanto pode, não poderia encará-lo depois do ocorrido, e ele, por sua vez, nem dava sinais de que se importara.

O amor que ela nutria por ele, ia muito além da presença física. Ela sempre achava um jeito de vê-lo pelos buracos da parede ou adentrando a mata e furtivamente, se encolhendo atrás de algum arbusto, só para vê-lo passar.

Nunca mais se falaram a sós, parecia que aquele beijo fora fruto de sua imaginação, mas, que mudara para sempre a sua vida naquele lugar. Sentia que pertencia a ele e as manhãs ficaram bem mais prazerosas só em pensar que ele chegaria para mais um dia de trabalho. 

A família dele era bem grande, todos trabalhavam juntos e eram boas pessoas, muito simpáticas e prestativas, trazendo muita satisfação para ela e sua família, que acabaram se tornando bons amigos.

Ela ainda estava esperançosa de que um dia eles pudessem ficar juntos, não havia pressa, talvez, com um pouco mais de idade, ele pudesse promover algum encontro, ou talvez, pedisse a sua mão para seu pai.

Os anos se passaram, o amor só aumentava e nada! Nem sequer um olhar mais demorado, nada!

Até que um dia soube da novidade.

Estava um dia muito quente, daqueles em que até a saliva pode queimar os lábios. Ele chegou na porta de sua casa, pedindo um copo de água fresca. Ela foi até o balde, encheu um copo e entregou para ele. Ele sorveu o liquido em pequenos goles, enquanto a encarava nos intervalos. - O que foi? ela perguntou: - Por que me olha assim?

-Assim como? ele respondeu: 

-Desse jeito que não entendo!

-É que eu preciso te contar uma coisa, antes que você saiba de outro modo!

-Que coisa!

-Eu vou me casar!

- Casar?  - Mas como, se nem está namorando?

- Pois é! - sabe por que não te procurei mais?

- Por que não quis, ora!

- Não, resposta errada. Eu quis e muito! Só que não achei justo te enganar. 

- Como assim, me enganar?

- Na minha cultura, são os pais que arrumam casamento ao filho mais velho, porque, é o filho mais velho que fica morando junto e cuidando deles quando se casam. 

- Como assim? - O filho mais velho não se casa por amor?

-Não! O amor chega depois. Deu uma bela gargalhada achando graça de tudo, enquanto ela balançava a cabeça de um lado para o outro sem entender.

E foi assim que os sonhos mais lindos que ela já teve na vida se desvaneceu. Ele continuou trabalhando perto de sua casa, ela continuou vendo-o todos os dias, até que aquela paixão foi embora, assim como veio, deixando-a livre para outras experiências.

Hertinha Fischer
















Pétalas de razões

Despediram-me ainda na aurora, para que o dia me acolhesse por inteiro, antes que a noite revelasse outro lado. Havia pontes, idas e vindas, mostrando intenções que, por trás de tudo, terminavam e recomeçavam. Pediram-me que caminhasse devagar, sem compromissos com passagens estreitas e desertas que certamente encontraria. Ensinaram-me amor em qualquer instante, fé em cada passo e confiança, especialmente quando precisasse de algo mais que coisas. Quando finalmente deixei o casulo, já me sentia forte o suficiente para voar, desbravar, mas sem me sentir corajosa demais. Colocaram uma balança em minhas mãos para dosar sonhos, uma fita métrica em cada pé para não dar um passo maior que a perna. Assim, cresci à sombra do bem-querer, sobre pétalas de razão, perfumadas com emoção, sem pensar ou desejar mais do que me cabe.

sábado, 2 de agosto de 2025

Mente e coração

Ainda estou a desvendar esse labirinto de tijolos e telhas, onde minha alma se refugia em um corpo já marcado por lutas e labutas. Ainda quero caminhar, ainda quero voar mais um pouco na ponta dos pés. 


Como quem, parado, se desloca por dentro. 


A última gota não secou, transborda serena. Não desejo coisas, quero o que está além delas. As estrelas ainda brilham. Há um céu de encantos e desencantos nos cantos. Uma porta pequena ainda se abre, e há uma certa suavidade além das cortinas das janelas, voltadas para tempos e contratempos. 


Se pudesse voltar, mudaria algo? Talvez! Esse sabor que ainda sinto em rostos que já nem vejo mais... Onde estariam agora, se ainda estivessem? 


Há um desejo que ainda persiste, uma conexão entre a mente e o coração, que ainda guarda o que o tempo escondeu. 


O "meu tempo" passou entre as urtigas, temperadas com sal, enquanto meus passos absorviam as gotículas suaves da vida. Sempre havia sorrisos na boca da noite e suavidade nos olhos do sol. 

Hertinha Fischer.