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Deleite com café

  A janela, onde o sol nasce, sobe as escadas das flores e ali permanece, sentado, até que a porta da poesia, se abra, lá pelas bandas das ...

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Esperança - Pôr em poder

 O que ela conhecia da vida.

 Enquanto nos rádios se falava em taças de vinho, ela segurava sua caneca velha de alumínio , sorvendo feliz seus goles de água da bica. Nem tão fresca, mas, suave, como qualquer bebida sofisticada da qual ouvia se falar.

Costumava se embriagar em alegrias colhidas nos quintais. Em seu íntimo era a princesa do roçado, no qual seu príncipe se exercitava e lhe incumbia de fazer-lhe companhia. As árvores que rodeavam sua casinha lhe pareciam tão simpáticas e acolhedoras, como se tivessem nascidas com ela, no mesmo dia, na mesma hora e com os mesmos sentimentos do existir.

Quando o vento as tocava com seus frenéticos halitos, a invisibilidade amorosa se fazia ver em suas folhas verdejantes a dançar. A fazer amor com delicado ênfase de vai e vem, gritinhos de prazer podiam ser ouvido e sentido pelo ar que espalhava volúpia ao derredor. 

Ela ouvia extasiada aquela frenética conquista, até que inflamasse os sentidos e a chuva chegasse de mansinho, povoando aquele lugar com a magia das gotas prateadas, cingindo o ar com pureza, despejando flores a desabrochar pelos cantos. Rouxinóis cantavam nos arredores, borboletas faziam parte da festa, e os sapos despertavam em sua cidade de banhado, coaxando a chamar pelo amor.

Modesta estava por dentro, por fora, uma ostentação em beleza, uma coroa banhada pela luz do contentamento, acendida com pavios de préstimos e bem querer pela composição das coisas. Tudo fazendo parte daquela maestria, sintonizado pelo espaço tempo, e ela fazendo parte. 

Alguns torrões de terra se soltavam com a água que se esparramava em seu quintal, vindo de longe, como uma visita desejada, deixando seu rastro ao ir embora. Era hora de fazer farra com a enxada. Bastava tirá-la de seu lugar e colocar as mãos abençoadas sobre ela, que já a ouvia cantar. Formavam logo uma dupla afinada. E no Rep-rep se complementavam.

O lugar, aquele lugar, onde tudo era festa, até as madrugadas recebiam recompensa, quando o galo as saudava com seus cantos, assustando as estrelas que já sumiam do céu. Acordando suas galinhas despertando-ás  com a Flamula invisível a balançar sobre as asas. Um alvoroço de sons e melodias enchia o ar de satisfação. E a cama a expulsaria para mais uma etapa.

As macias palhas de milho, juntavam-se com alguns frágeis galhos secos, a iniciar o fogo precioso. Madeiras de fibras um pouco mais intensas, iam se incumbindo de fazer o fogo mais fogoso. Até que se formassem grandes labaredas, pronto para lamber com força o fundo da chaleira, que se uniam para despertar a água que deveria se esquentar. 

Quando alcançava a estrada de terra sobre um sol forte a fustigar-lhe a alma, achava sempre um meio de compreender e achar bonito o modo em que vivia. A chinelinha que lhe acudia a sola dos pés, ante as pontiagudas pedrinhas miúdas que tentavam machucá-la só para ouvir os seus gemidos. Gostavam de sua presença só para saírem de seus estados vegetativos, quando em grupinhos, formavam o que chamavam de viver inutilmente. Só quando ela passava com seus suaves passinhos é que sentiam que estavam ali. Podiam sentir-se vivas e deslumbrantes a saltar de um lado á outro.

Via então o marido a sumir entre capins. quando a força das mãos decepavam-nos rente ao chão, transformando suas tramas em pó. Entre meio, surgia o roçado, que no fogo se consumia de todo, até que se fizesse a dança da terra, a se remexer em suas entranhas, até poderem suportar as sementes dentro dela. E novamente, a vida despontava entre os torrões, na suplica da fome, na coerência do crescer.

A formosura do tempo da colheita, que o tempo enfeitara de grãos, não, sem antes, a comporem com flores. Não conhecia rimas, mas versos e poesias enchiam o ar.

Um silencio povoado de cores, de prosa, amores, cantos e contos - em asas de passarinhos, em cidades de sapos e formigas, em elos demandando, em elos sucumbindo antes seus olhos serenos.

Uma pessoa, pensava: -  Uma pessoa e sua família. Uma família que seria pessoa, uma pessoa que se formara família. Mas, que, de outras famílias saia. 

Um a dois. dois em um. Compondo uma só orquestra. 

E as noites chegavam perenes e mansas, prometendo descanso, as cortinas da labuta se fechavam e as lamparinas a querosene escurecia as narinas, alumiavam apenas o que vieram para alumiar- a saber: nada menos que os pés.

E a cama chamava, absurdamente afável em seu canto de misericórdia, chamava para o descanso final, enquanto afagava com as mãos pegajosas e frias, as pontas e o coração do travesseiro, até que a cabeça se encaixasse. Só depois de muito custo e viração é que a mente dormia.

E quando dormia ainda se via a trabalhar em sonhos. Era a padecida senhora, que desconhecia prazer, mas, que de prazer se doava.

Certa hora em que havia festa na vizinhança, se viu a vestir uma calça, abandonando seus vestidinhos surrados a descansar na cadeira. Saiu saltitante ao lado dos filhos, uma calça da cor de ovos de Nambu, tão roxo quanto. Bem ajustado em seu formoso corpinho. Estava tão bonita que nem se deu conta do olhar de zanga que o marido colocou sobre ela. - Volta para casa, ele dizia: - Não quero te ver vestida assim. Parece uma menina solteira, e já está casada faz tempo. Ela pestanejou calada, como se o algoz pudesse furar seu olho. E voltou-se para o quarto, sem nenhuma vontade de obedecer, Mas, o que faria sem ele? E como viveria sem aquele olhar de reprovação que, as vezes, a colocava em xeque. Mas, não podia reclamar, por que ele tinha aquela sobriedade de vestir, e ela tinha que respeitar.

A noite, já despida de qualquer aflição, despejava todas as frustrações para debaixo do travesseiro, enquanto o marido a supria com carinho. Talvez, mais uma gravidez a vista, quem saberia?

Os dias lhes contava as horas, que nem de horas sabia, apenas aquela sensação de poder se escorrer por entre os dedos. A vida lhe dava e as vezes tirava.

O silêncio povoado de suplica, o olhar que dizia tudo, e, as vezes, um conversar solitário.

Já não podia voltar atras, atrás não havia. Ou estava no lado direito, ou não haveria mais nada. Até o rio lhe parecia orgulhoso e cruel, as vezes, ambicionando sua posição - a morrer de inveja quando ela subia o morro, e ele só poderia correr para baixo, Então, ela entendia de si.

Tudo estava no lugar, até o chapéu de seu marido ficava, por horas, pendurado num prego, a vista de todos, só esperando a hora em que seria solicitado. Então, por que ela não? Por que estava tão incompreendida em seu lugar, se todas as coisas se compreendiam no zelo. Se colaborar significa aceitar, nada mais do que ser  e fazer o outro feliz, Não mais como um galo velho a espantar suas galinhas com o bico, mas, como um galo consciente, que as ganha, arrastando suas asas no chão e dando-lhe o que comer, enquanto as enquadra para ganhar e não perder.

Já deixara seus pais e seus irmãos, todos, a notável arte de viver suas próprias vidas. È para isso que nascemos, para deixar a casa principal e construir a nossa historia sobre nosso próprio domínio. Zangão e abelha, ovos e filhotes. E o cuidado ao meio.

Cuidado, disso ela sabia, não aquele cuidado falado, que se resvala  em si, mas, o cuidado, que se amplia além da mediocridade do poder. Além da recompensa, além do pódio, mas, da capacidade de competir com o dia, da suas próprias mesmices. Vivemos das mesmices. 

O que o avô fez, o filho faz e o neto acompanha. É assim que a inteligência ensina. É assim que os elefantes procuram água e comida, por caminhos, que, de antemão, alguém já teceu. Sempre ouviu falar dos trilhos dos animais. Muito mais fácil, tomar para si, algo que já foi domado, do que ter que lutar contra o desconhecido. É a mesmice complacente. O ensino ensinando; as falas -  o comportamento - até as águas foram ensinadas a se transformarem. Como tentar ser diferente em um mundo todo igual, vestido de competência para agregar valor a subsistência dos seres e das coisas que se complementam?

 

A campina, o ar, as paisagens, ela, seu marido, os filhos. depois virão as noras, os netos. E o trabalho.

Alguns pilares a segurar as paredes e os telhados,

A sua casinha tão pequenina, cheias de buraco, que em noites enluaradas, lhe sondava o espírito, inerte, dentro de um corpo adormecido. As andanças da mente, enquanto descansa. Os sonhos que se desvanecem ao amanhecer. A vida que pulsa as escuras, a esperança que não cansa. Tudo faz parte sem que precisemos nos esforçar. E casamento é isso. Nada mais, que, simples esperança na passagem dos dias. Tudo ou quase tudo se desintegra no tempo.

Enquanto pudesse resistir, ela ficaria em pé diante dos obstáculos, a cuidar do que seria dela, a cuidar do que dependeria dela. Já não mais como dona de si mesma, mas, como Senhora absoluta das coisas e dos momentos, que, por ocasião, poderia não ser do seu agrado.

Se pudesse se fortalecer, as visões teriam a mesma força, poderia ver as coisas e fatos como simples coisas e fatos. Sem melodramas ou outra forma de subtrair.

A coroa que lhe serviu, seria a mesma coroa que sempre serviria, mesmo que fosse trocada, ou mesmo que não servisse mais, nunca deixaria de ser rainha em seu trono de papel.

As letras que seus filhos tentaram-lhe ensinar, não passava de rabiscos indecifráveis que não diziam muita coisa que ela já não soubesse. Escrever é um ato de compreensão já compreendida. Algo que se ensina mais para registro do que para vivência. Seu quintal estava mais para um hábil professor, do que, a escolinha distante. Lá ela aprendera os nomes das plantas, sem nunca lhes terem ensinado. e dera nomes a cada um de seus filhos, como se tivesse tudo registrado no coração. E seu útero sempre teve as respostas. mesmo que não soubesse de onde viriam seus filhos. Eles se formam de quê? De onde tiram proveito? Se nascem desse corpo pequeno e se tornam grandes, Não seria mérito de alguém que não fosse eu?

Por que haveria eu de me preocupar?

Tem quem pense que cidade deve ser construída ao redor de um rio. E é o que afirmo que é. Todas nascidas de viajantes despreocupados, que por um motivo, ou outro, precisavam descansar. e o comércio seguiu o mesmo curso. Onde tem gente, tem consumo. E onde tem consumo, ha uma grande quantidade de gente. E somos consumidos pelo consumo, que, nos consome a vida, que mantém a vida valendo.

Ela tinha a chave no mundo, entranhadas nas bananeiras, que imponentes traçavam o seu espaço, abrindo todas as possibilidades de sentir-se livre entre elas. Pequena e subjetiva presença entre tantos galhos viventes, que, engordavam a cada pancada de chuva, e se esverdeavam de prazer ao sair do sol.

Suas hastes severas se erguiam, seus cachos sublimes empoleiravam em seu pescoços gigantes, assim como ela, agora, plena de vida, ansiava por mais vida.

E estava ciente que teria pouco tempo, seu pequeno corpo definhava, mas, por dentro, tudo crescia.

Uma vontade descomunal nascia daquele lugar. Uma corrente de elos resistente: as estradinhas que ela amava e que amava a sua presença. As folhas de outono vinham a voar com o vento, trançado-se em seus cabelos cacheados e negros, fazendo parte da festa, dançantes das horas vindouras. E o baile dos pirilampos em noites de verão, que enfeitavam os ares com suas luzes cintilantes entre as folhas do bananal.

Não era sobre viver.

Era a própria vida a pulsar nos montes - nas serestas dos seres noturnos -  na orquestra dos mundos dos sapos, nas auroras boreais do coração e .... ela,  á sondar a vida nos campos, enquanto, dentro dela, vidas cresciam...

Hertinha Fischer




























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