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Som de tristeza

  Som de minha tristeza Ecoa por dentro palavras que nem consigo dizer Não há letras no lamento Se em lágrimas almejasse olhos tristes derra...

domingo, 23 de abril de 2023

Fascínio de uma vida


Nunca gostei de beleza fabricada.
Amava o cantar do monjolo de Dona Vicentina a contar seus poemas enquanto triturava o milho.
Arvores suntuosas achegavam as bordas para cheirar o levedo.
A anfitriã em seu banquinho de madeira talhada a colher seus sonhos, enquanto a mata desvendava seus mais alinhados sonhos.
Enquanto a fornalha se aquecia com as labaredas, beijando o forno, numa lânguida e terna paixão, o monjolo contava seus casos de amor com o milho umedecido. Havia muita história contada entre águas de cachoeira, numa afinidade de sentimentos que se transformava uma coisa em outra. As vestes de Vicentina estavam coesas com o momento. Como uma dama a encantar seu amor numa festa.

O doce biju, sem açúcar, açucarava-se em sua presença, o paladar ouriçava de prazer ante aquela certeza. O som do pau de pilão a tocar, com força controlada, pelo cocho repleto de água que impulsionava uma bela lição sertaneja - orquestra antiga exemplificando modéstia. Além de tudo aquilo, ainda se pensava em criança. Vicentina era parteira nas horas vagas.
 Quando uma criança se preparava para vir ao mundo, o monjolo se calava e a floresta pairava na expectativa. Logo o som supremo se ouvia entre paredes. O anjo mais uma vez recolhia suas asas para colocar suas mãos em prática. tinha o dom de trazer a vida.
Dava vida ao milho, dava vida aos seres do ventre, e, consequentemente, tratava de fazer, da farinha, o manjar que nutria mãe e filho.
Vicentina não tinha idade. sempre existiu pelas bandas do amor, conhecida aos arredores pela sua perspicácia.
Se não tinha café, fazia uma garapa de açúcar e água quente. Se não tinha muito feijão, fazia um virado com sua farinha. Mas sempre havia gente em sua casa, seja para uma rápida visita ou, simplesmente, para ter longas conversas e absorver de sua santa sabedoria.
O monjolo, as crianças, a comunidade, Seu José Santo, seu esposo, que vivia numa cama, por causa de lesões de dente de serpente, que lhe causara úlceras eternas. A casinha de barro, a cobertura de sapé, o rio que deslizava na ladeira, a estradinha que levava ao trabalho, as suas pisaduras que nutriam o lugar. O fogãozinho a lenha quase grudado ao chão, o picumã que enfeitava as paredes, a carne dispostas em varais e os gatos deitados entre panelas pretas pelas fuligens de labaredas.
Tudo isso tinha nome e sobrenome: relações humanas. Uma pessoa assim nunca morre, nunca ouvi sequer um murmúrio sobre isso ter acontecido, acho que ela se juntou aos restos de seus conhecimentos e jaz junto ao monjolo que ainda resiste ao tempo ao lado da pequena cachoeira. Assim como esta meiga lembrança que guardo em mim, como quem ainda sente os braços que me separou do ventre
 de minha mãe para trazer-me até aqui..

Hertinha Fischer

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