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Luz azul

  Quando olhava o que ele fazia, ficava extasiada. Era capaz de fazer qualquer coisa andar, especialmente, quando manejava seu tempo. Era me...

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Confessando um pecado

E la estava eu  toda enfeitada dentro de um vestidinho de chita, nos
pés uma sandália de plástico, me sentindo a deusa do dia!
Sorria para mim mesma, salteando de lá para cá, com sabor
de felicidade na boca,
Sem me importar com os dentes encavalados, bem no meio
daquele sorriso que me parecia lindo, uma enorme cratera se abrira.
Uma cratera aberta por um bichinho de nome estranho, ao qual ainda
nem tinham me apresentado.
Achava normal os dentes apodrecerem, só não entendia o por que
daquilo ter acontecido tão precocemente.
Eu só tinha dez anos, e a troca do dente de leite para o dente permanente
só acontecera a quatro anos.
Em tão pouco tempo de vida eles já pareciam velhos e desgastados, prontos
para serem arrancados.
E eu pensava na minha sorte, tão duvidosa e tão desleal. Pois, para minhas amigas, as coisas
eram diferentes. tinham os dentes branquinhos e perfeitos, cabelos sedosos e bem cuidados, roupa bonita. E eu, tão desleixada e sem graça.
Me envergonhava da minha aparência, a ponto de me esconder atras de uma timidez quase
que desumana.
Ainda bem, que, em minha casa, naquela época, não havia espelhos, e as únicas vezes que me olhei através de uma fotografia ou no espelho retrovisor de um carro qualquer, levava um susto.
E o pior é que depois de algum tempo a coisa ficou realmente feia; - meus dentes começaram a sofrer inflamações, minha boca ficava deformada, assim como todo o meu rosto, e as dores se tornavam insuportáveis, a ponto de quase me enlouquecer.
E, eu pensava: - até quando irei suportar?
A agonia de sofrer e de não ter solução. Meus pais e irmãos pareciam estar alheios a minha dor, como se sofrer fosse uma coisa curriqueira.
Foi então, que fiz uma coisa muito errada, talvez, pela primeira vez, cometi um delito consciente, eu sabia o que estava fazendo, só não pensei em nada, nem em quem lesava.
Nós costumávamos trocar favores com nossos vizinhos.
Chegada a época da colheita de cebolas, era preciso trançar as cabeças para armazenar o produto até alcançar um bom preço. Como era um trabalho feito artesanalmente e dentro de um barração. Nosso vizinho vinha nos buscar a tardinha, depois do expediente de trabalho na lavoura. subíamos na carroceria de um caminhão e rumávamos para o barração, e lá ficávamos até altas horas a trabalhar
na confecção das tranças.
Eu me lembro como se fosse hoje. Ano de 1970, dia de jogo da copa do mundo. todos estavam no barracão, trançando as cebolas e assistindo o jogo do brasil pela televisão. se não me engano era o jogo da semifinal.
Eu sai de mansinho e comecei a andar por la,  desci  uma ladeira imensa até a casa do dono das terras, estava tudo no silêncio, embora as luzes estivessem acesas.
Entrei num comodo, parecia ser o quarto. Do lado da cama, havia uma penteadeira com várias gavetas, e eu abri uma delas. Não tinha nenhuma intenção naquela hora, apenas xeretar mesmo. afinal, eu só tinha dez anos de idade.
Só que, me deparei com muito dinheiro,mas muito mesmo, eu nunca vira tanto, estavam todos espalhados como se tivessem sido jogados la dentro. olha! estou confessando agora, com muito arrependimento, mas, naquela hora, minha mão, apenas agarrou uma nota, e era grande, agora eu sei que era grande, cinquenta cruzeiros da época, coloquei no bolso da minha calça e sai de mansinho, como se aquilo nunca tivesse acontecido.
Voltei para o barracão sem que me notassem, continuei a trabalhar até a hora de nos trazerem de volta.
Guardei com carinho aquela nota, para que ninguém descobrisse. E já tramava alguma forma de fazê-la aparecer, sem que nenhuma suspeita de roubo caísse sobre mim. Eu tinha consciência do que me aconteceria, se acaso, meu pai descobrisse. seria uma surra da que eu uma mais me esqueceria.
Então, esperei pacientemente, até surgir uma boa oportunidade para fazer a nota aparecer, e tinha que ser nas minhas mãos, pois se uma de minhas irmãs achassem, com toda certeza, ficaria com elas.
Numa determinada tarde daquela mesma semana, minha irmã mais velha me convidou para ir com ela na casa de uma amiga.  Para chegar la, havia apenas uma trilha, cercado dos dois lados por arbustos rasteiros.
 Antes de sair, eu peguei a nota, segurei firme em minhas mãos, e quando estávamos atravessando a trilha, eu fui andando atrás dela, Joguei a nota para a frente e gritei para ela antes de agachar para pegar a nota:- veja o que eu achei!
minha irmã se virou, no exato momento em que toquei a nota com as mãos. Não tinha como duvidar do meu "achado"!
Ela quase desmaiou ao olhar para a nota. E, ao voltarmos para casa, foi ela que contou a todos o quanto tive sorte naquele dia.
Bom! eu não roubara para fazer farra com aquele dinheiro, embora, a palavra roubar, naquele momento, não fazia nenhum  sentido para mim, eu nem sabia qual era o seu significado.
No dia seguinte, eu tomei um ônibus, fui até a cidade, e encontrei uma tabuleta indicando o consultório de um dentista.  Entrei.  E ele fez um orçamento para consertar os meus dentes. ficaria em uns quarenta e cinco cruzeiros, o restante eu usaria para a passagens de ônibus até terminar o tratamento.
Imaginem! Se me perguntarem se isto foi premeditado? Eu responderia com todas as letras:- Não!
As coisas iam acontecendo de uma forma tão natural, como se algo bem maior que a minha própria capacidade me guiasse a fazer aquilo. Não sei explicar!
Só sei que, a partir daquela época, eu não sofri mais com dores, e também comecei a viver com muito mais dignidade, sem ter que me fingir de morta para esconder o feio que havia em mim.
Também arranjei trabalho, e já conseguia comprar as minhas roupas, que não eram coisas finas, mas que, de alguma forma, me faziam sentir que era gente e não bicho.
Você, leitor, ha de me perguntar:- se eu tinha uma família de verdade?
Eu lhe responderei que, sim! Eu tinha uma família de verdade, assim como os animais, que não se importam uns com os outros, apenas existem, mas ainda não aprenderam a viver.

Herta Fischer



















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